Por Reinaldo Azevedo Conhecem a fábula do escorpião, não é mesmo? Para quem não sabe: é aquela em que o aracnídeo pede ao sapo que lhe empreste as costas para atravessar um rio. O outro desconfia: “Você vai me picar”. Cheio de lógica, aquele que pediu a carona argumenta: “Não vou ferroá-lo, ou ambos morreríamos”. O sapo, que havia estudado lógica, acha razoável e dá carona ao bicho. No meio do caminho, pimba!, sentiu o ferrão penetrar-lhe a carne sapal. Antes que expirasse, teve tempo de ser lógico uma última vez: “Mas ambos vamos morrer!”. Ao que lhe respondeu o outro, partidário do fatalismo trágico: “Não posso fazer nada. É a minha natureza”. É isso aí: o PT tem uma natureza. Para exercê-la, se preciso, investe na crise. Mais uma vez. Mas desconfio que, desta vez, vai-se ferrar sozinho. Os petistas, é visível, estão acuados, mesmo quando reagem com agressividade e ameaças veladas, como faz José Dirceu, outro que até pode mudar de face, mas não de essência. Anunciada a disposição do PSDB de tentar processar Lula por crime de responsabilidade, faz as suas ameaças, sugerindo que o “feitiço pode se voltar contra o feiticeiro”. Bravatas novas que se somam às antigas. Márcio Thomaz Bastos, que raramente perde uma chance de degradar a sua biografia jurídica, diz que, caso se fale em CPI, “só se for das privatizações” havidas no governo FHC. Por que a ilação? Este senhor é ministro da Justiça, não um rábula qualquer do petismo. Sabe de alguma irregularidade e também se calou? Se o fez, prevaricou ele também. O caso é, leitores, que eles não sabem de nada! Trata-se apenas do exercício da natureza do escorpião. Tanto não sabem que reparem bem como, na prática, de Lula a seus bate-paus, passando por Carlos Lessa, estão todos tirando o time de campo. O sempre loquaz, estridente e exótico ex-presidente do BNDES, que passou dois anos a sugerir a existência de pesadas irregularidades no banco, diz agora que não era bem isso, não. Que se referia a supostos problemas financeiros da instituição e blablablá. Vale dizer: ele não sabia de nada. Quando muito, tinha divergências sobre procedimentos adotados, mas que, à moda da casa e para atender à vocação escorpiônica, transformou em denúncia vazia. Pois bem: Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-presidente do BNDES, dará a Lessa uma excelente chance de se explicar por meio de um processo. A nota de FHC é um exemplo de rigor com as instituições e com a realidade política, dando ao presidente uma saída. Lula falou demais e sem pensar? Se o fez, que se explique e se retrate. Se mantém o discurso, o Congresso, como instituição, tem de tomar providências. Está obrigado a abrir processo por crime de responsabilidade contra o presidente e o “companheiro” que com ele compartilhou o segredo. Cometeram-se acobertamento de crime e prevaricação. Mas há um outro probleminha aí: se Lessa está falando a verdade agora e nunca denunciou corrupção no BNDES, então quem está mentindo é Lula. E mentiria por quê? Atenção agoraNeste ponto, peço ao leitor atenção para uma questão importante: sim, o PT quebrou a cara desta vez porque Lula não ensaiou direito o texto de palanque. Mas o que o levou ao discurso é método. Ele já está em franca campanha eleitoral, e os feitos que têm a exibir são bem menos vistosos do que dá a entender certa mídia. A cara de seu governo é o desemprego ter voltado aos dois dígitos; é o corte de quase R$ 16 bilhões no Orçamento; é a vergonhosa desídia no Ministério da Saúde, cuja incompetência e politicagem revelam uma face verdadeiramente homicida; é a reforma universitária soviética. E Lula já está em busca de um palanque. Há um certo fermento de antigovernismo se formando, tanto na sociedade como no meio político. O governo Lula, tudo indica, já atingiu o ápice de suas “realizações”. A chance de que tenha chegado a um ponto de inflexão e venha agora a colher desgastes é muito grande. Qual é, afinal, o último ativo do PT? Lula. Lula e sua fala fácil; Lula e seu discurso freqüentemente irresponsável; Lula e suas soluções simples e erradas para problemas complexos; Lula e sua crença de que, de fato, como disse nesta semana, é ungido pela vontade divina. A exemplo do que fez durante todo o ano de 2002 (a rigor, a exemplo do que faz desde sempre), desandou a fazer acusações ao léu, falando o que lhe dá na telha. Só que é agora presidente da República. Mas é um presidente candidato à reeleição. Pensem bem, leitores: Lula sem as bravatas, aquelas que ele mesmo admitiu, é o quê? Nada! Não existe. O que funciona no seu governo é continuidade do que herdou. Mas também, é verdade, mudou muita coisa, como se viu na Saúde: e mais gente começou a morrer. Mudou também na Reforma Agrária: os cadáveres se amontoam. Mudou também na educação: estamos prestes a ver a universidade brasileira, já capenga, destruída em definitivo. Lula precisa, em suma, lançar acusações ao vento para se justificar. E o faz, é preciso dizer, de uma forma covarde, pusilânime. O “companheiro” que lhe teria feito a denúncia não tem nome; os acusados não têm nome; as acusações não são definidas. Entendam bem: o PT não quer mandar esta ou aquela pessoa para o banco dos réus — até porque, como sempre, o provável é que não existam nem crime nem criminosos. O PT quer mandar para o banco dos réus a oposição. Como é um partido com DNA totalitário — e Lula é seu emblema e seu maior beneficiário —, investe no racha da sociedade, no confronto. Esquece, no entanto, que o país tem instituições por enquanto sólidas, aquelas que eles, petistas, não conseguiram ainda conspurcar. E, nessa condição, reagem. O que quero dizer é que o estilo chavista de Lula é deliberado, pensado, organizado, decidido. A decisão de satanizar a oposição não foi um rompante, não foi um deslize. O presidente, desta vez, só não cuidou direito do texto e foi muito além do que seria razoável e aceitável dizer. Na sua pantomima, como um ator que acredita que de fato é Lula, cometeu o chamado overacting, deixou que sua representação evoluísse para o histrionismo. E, agora, ou a República se degrada ou ele se explica. Volto ao escorpião. Até havia pouco, muita gente boa e com acesso ao bom pensamento estava se deixando seduzir pela suposta conversão petista. Conversão nada! O Lula que se viu na quinta-feira, a deitar fora ligeirezas e falas irresponsáveis, era uma antecipação de um eventual Lula vitorioso em 2006. É para isso que caminhamos. Os demônios da hora foram aqueles escolhidos. Podem ser outros. Pode ser qualquer um que, por alguma razão, o partido decida que precisa ir para a fogueira para atender a seus interesses táticos ou estratégicos. E essa é uma das grandes diferenças entre um partido democrático e outro que usa a democracia apenas como instrumento para chegar ao poder — e, se preciso, solapá-la. Partidos democráticos não põem em risco a reputação das instituições ou do cargo que ocupam apenas para manter o poder ou conquista-lo. Ao contrário: democratas sabem que o respeito às regras é a sua própria garantia de sobrevivência. A exemplo do que fez FHC com o próprio Lula, transmitindo-lhe o cargo numa transição exemplar e reiterando que o outro, a despeito de sua biografia de sandices e bravatas, não faria nenhuma besteira. Falavam em nome do Brasil, não do PSDB. Ocorre que Lula consegue ser ainda menor do que o próprio PT, que, vá lá, ao menos na origem, tem raízes no movimento social. Lula sempre foi o candidato, finalmente bem-sucedido, a burguês do capital alheio, supondo — e contando, para tanto, com o encanto basbaque de meia dúzia de tolos politicamente corretos — que tudo o que não estudou (porque não quis) e tudo o que ignora, porque tem preguiça de ler, lhe seria transmitido pelo Espírito Santo. Quem apostou que o escorpião tinha virado borboleta começa agora a ver que não é bem assim. Na verdade, está-se criando um bicho exótico e bem perigoso: um escorpião com asas. Que têm de ser cortadas a tempo. |
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