sábado, fevereiro 26, 2005

Jornal O Globo - Inadequado por Miriam Leitão



Um presidente da República quando ouve uma denúncia de que há corrupção no governo, seja na gestão de quem for, manda apurar. Jamais pode mandar esconder do país. Um presidente quando, em declarações públicas, faz uma acusação grave, como a de corrupção, tem que estar absolutamente seguro do que diz e passar as provas ao Judiciário para que seja iniciado o devido processo legal. Um presidente não insinua, diz com clareza o que quer comunicar aos cidadãos que governa.
Tudo naquele longo improviso do presidente Lula é tão inadequado para uma autoridade pública que deveria levar o governo a parar e refletir. Mas, pelo visto, a culpa de novo é dos outros e não do presidente.


Ontem mesmo, o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, disse, em Buenos Aires, que a culpa da declaração do presidente é do PSDB, que estaria criando “instabilidade institucional”. E fez uma ameaça espantosa: “O feitiço pode virar contra o feiticeiro. Investigações são feitas pelo Congresso Nacional, nós sabemos como começa, mas não sabemos como termina.”

O que será que o ministro quis dizer? Que quando as investigações são feitas por outras instituições sabe-se como terminam? Que é melhor ninguém reclamar da insinuação presidencial porque há coisas, de fato, encobertas que não podem aparecer?

Como tantos já disseram, improvisos presidenciais não podem ser feitos ao sabor do turbilhão mental de quem não pensa antes de falar. O que está em jogo é a liturgia do cargo, como diria o ex-presidente Sarney. O que está em jogo são as instituições da República.

Em nota, o ex-presidente Fernando Henrique exigiu retratação ou o esclarecimento devido. O presidente Lula tratou seu erro com leveza: disse que foi “um discurso atravessado”. Discurso atravessado é uma boa definição para aquele discurso em que o adjetivo está errado, mal posto ou fora do tom. Isso é comum. Mas é inédito atravessar o discurso no substantivo, ou seja, quando a pessoa relata um fato no qual ele próprio é um dos personagens.

O espanto maior é com a parte em que ele manda o “alto funcionário” não repetir o que acabara de dizer e determina que ele “feche a boca”. A declaração completa é esta: “Olhe, se tudo isso que você está me dizendo é verdade, você só tem o direito de dizer para mim. Para fora, feche a boca e diga que a nossa instituição está preparada para ajudar no desenvolvimento deste país.” E, quando o tal alto funcionário insistiu, ele repetiu com um argumento ainda mais estranho: que geraria falta de confiança nas instituições. Ora, se o BNDES está quebrado, o governo deve anunciar uma capitalização ou fechar o banco. Em qualquer cenário, a República continuaria com suas instituições em ordem. O que ameaça as instituições é não apurar delitos dos quais tem ciência o presidente da República.

Para Lula, ele é o “maior vendedor de otimismo que este país já produziu”. Então é coisa recente, porque, durante sua vida política, ele colecionou declarações pessimistas sobre os rumos do Brasil, quando governado por outras pessoas. Mas agora é diferente, pelo visto. “Primeiro, eu acredito em cada gesto que eu faça por este país; segundo, eu acredito que o Brasil está tendo uma oportunidade histórica que há muitos anos não teve. E as que teve, jogou fora. A gente pode lembrar da esperança que foi o Plano Cruzado, em 1986, e que acabou depois das eleições de 15 de novembro. A gente pode lembrar do que foi o sucesso do Plano Real, em 1994, e que acabou quando se aprovou a tese da reeleição neste país.”

Esta frase final é realmente surpreendente. O presidente Lula, então, está convencido de que o Plano Real deu errado e que ele recebeu uma moeda de nome real aceita em todo o país e a inflação domada, em um dígito, de um plano que fracassou?

Na declaração em Vitória, o presidente Lula cometeu vários outros deslizes e as mesmas cansativas repetições. Só a expressão “este, neste ou deste país” foi repetida 26 vezes. O presidente fala de forma tão irrefletida que seus discursos parecem raciocínios sem seguimento lógico. Lula falou sobre a obra que considera fantástica de transposição das águas do Rio São Francisco. Disse que já foi contra a obra. Logo depois disse que o país sempre quis fazer essa obra: “Nunca conseguiu fazer, porque tem sempre uma oligarquia que quer manter aquele povo na miséria, não quer que se leve a água.” A dúvida que fica é: quando ele era contra, era para defender a oligarquia que queria manter o povo na miséria?

Viraram rotina no Brasil as declarações do presidente Lula em que há incorreções, imprecisões e equívocos. Mas o que aconteceu agora é mais grave. Não é apenas mais uma gafe. Frases como as que foram ditas podem produzir no cidadão falta de confiança no governo de forma geral. A democracia é um patrimônio conquistado com muito sofrimento e, para merecê-la, os cidadãos precisam saber exatamente qual é o comportamento adequado de cada um em cada situação. Na quinta-feira, em Vitória, o comportamento do presidente da República não foi adequado. E ele só tem dois caminhos: ou se retrata, ou esclarece a denúncia que foi insinuada na capital do Espírito Santo.

AO FALAR numa reunião organizada pela Bear Stearns, no Rio, o ministro José Dirceu se animou com os dados do crescimento e disse que o que mais tem sido fabricado no Brasil são trilhos. Há mais de dez anos, o único grupo que produzia trilhos parou de fabricar.

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