terça-feira, fevereiro 22, 2005

O GLOBO Arnaldo Jabor Vem aí a alvorada dos severinos

Vamos botar a bola no chão: o Severino não é uma verruga maligna surgindo na cara da política nacional. As verrugas são outras. Há dois governos, tentamos impor ao Brasil uma modernidade que ele não aceita. A era-FHC trouxe um pacote renovador com a crítica-prática às idéias da velha esquerda, com uma visão de “processo” e não de “solução”, e nos mostrou as vinculações da economia-política brasileira com o resto do mundo. Além disso, aceitou o paradoxo de se utilizar do fisiologismo do “atraso”, para extrair dele uma política modernizadora “republicana”. Depois, Lula chega ao poder com seus militantes e pensa em “radicalizar” o trabalho anterior de FHC. O PT (mais que Lula) tenta “esquerdizar” a realidade brasileira, desconfiado da democracia “burguesa”, mas vivendo nela. FHC quis ser realista. O PT (mais que Lula) quer ser ideológico. FHC criticou as ridículas utopias paralisantes. O PT (mais que Lula) quer realizar utopias num país de paralíticos. A verdade é que estamos há dez anos tentando pespegar na vida política nacional uma “modernização”, seja ela “petista-moralista-esquerdista” ou “social-democrata-uspiana-chic”. E, nesses dez anos, esta “modernização” tem sido uma tênue casca sobre uma realidade política que sempre tenta expeli-la, como a rejeição de um implante. Nesses dez anos, todas as armadilhas dispararam contra as reformas, submetendo os presidentes a torturas infamantes, como sofreu FHC com ACM, Sarney e com o próprio PT; exatamente como, agora, sofre o Lula com o “fogo inimigo” dos comunas e com a resistência fisiológica dos conservadores. A Velha Guarda do atraso não agüenta mais continuar no banco dos reservas, aliados inferiores das tais “vanguardas progressistas”, e querem retomar o querido caminho da paralisia histórica. Os projetos de FHC e Lula é que têm sido as anormalidades, as verrugas. Abortos foram os oito anos da tentativa tucana de imprimir Weber na política nacional e os dois anos de um sutil “leninismo” e de um secreto “gramscianismo” vulgar nas brechas da informação. Os severinos sempre estiveram aí nas bocas, debaixo do tapete da nacionalidade, mas loucos para voltar à doce escrotidão de um mundo de toupeiras. Graças a Deus que, assim como FHC aprendeu com o primeiro Lula — que trouxe um espontâneo pragmatismo “social-democrata” para o ABC , inspirando o nascimento do PSDB — Lula também aprendeu a prudência macroeconômica com FHC. O Brasil só não afundou porque a sensatez do governo FHC teve a continuidade do núcleo central do governo Lula, feito de gente competente como Palocci e os ministros técnicos. Os dois se imitam na “realpolitik”. Só que FHC foi mais paciente e respeitou a força da sordidez nacional. Lula, assediado por eternos bolchevistas, respeitou menos. Todos os bodes que perseguem Lula foram sempre oriundos dos delíquios babacas dos leninistas. Ignorantes e ambivalentes, nunca entenderam que uma política progressista no Brasil consiste em combater o aparelho patrimonialista-oligárquico-corrupto de 500 anos e não ficar fazendo bravatas sobre lutas de classes, que já foram perdidas desde as capitanias hereditárias. Essa gente não entende que ser “de esquerda” no Brasil é combater o Estado gastador, destroçar a burocracia , o clientelismo, a estrutura política arcaica do país. Nada mais. Mas continuam disfarçados de “democratas”, usando todos os cacoetes da velha tradição “comuna”. Quando Zé Dirceu deixou o trambiqueiro Waldomiro negociar no Congresso, deve ter pensado: “Ah... tudo bem... os fins justificam os meios... trambiqueiro é bom para negociar com trambiqueiro...” Deu no que deu. O exemplo de Dirceu é emblemático porque denota o procedimento geral do PT no poder e seu desprezo pelos severinos, que são a maioria. A aliança do PT com “partidos burgueses” sofre do autoritarismo dos que acham que podem mergulhar na sacanagem sem se sujar, por serem de “outra cepa”. Se antes eram “virgens no bordel”, agora se acham “prostitutas puras”. Disse-o Dora Kramer com perfeição outro dia: “O PT construiu estereótipos e, uma vez no governo, passou a agir como acreditava que agissem os poderosos: sem escrúpulos e sem limites, tomando como ponto de partida a premissa de que ao Poder todos se rendem, o Poder a todos corrompe, o Poder tudo pode.” A superioridade pragmática de Lula não dá conta. Seus articuladores políticos desfazem suas costuras inteligentes, com arrogância, impondo ao baixo clero as leis de suas intenções. Enquanto FHC tinha o saco de ouro de seduzi-los, o governo PT despreza-os nas salas de espera e tenta empurrar em suas goelas figuras indigeríveis com o “perfil avançado do companheiro Greenhalgh”, como o definiu Genoíno no doce jargão comuna. O mesmo Greenhalgh, trêmulo e ideológico, que defendeu os seqüestradores de Abílio Diniz com a atenuante de serem “de esquerda”. Pode? Esses “atos falhos” definem bem o pensamento profundo e “genoíno” dos petistas no poder, tratando os aliados e severinos como se fossem babacas, logo eles, “cobras criadas” muito mais espertas que os utópicos otários. Deu no que deu. Os severinos saíram de debaixo do tapete verde da Câmara e iniciaram a revolução das toupeiras, para vingar os dez anos de humilhações. E quem não é severino no Brasil? FHC não era, mas os tucanos que agora votaram nele o são. Lula não é um severino de esquerda, se bem que os há e muitos — Babá, Virgílio, tantos... Costa e Silva era severino. Castello Branco parecia, mas não era. Paes de Andrade é, Itamar é severino. JK não era, mas Dutra era, Jânio... tantos. Collor era um severino de Hermès. Sarney não é severino, mas é ribamar. Garotinho não é severino, mas é uma anomalia pior, é um pós-severino evangélico-populista-ambicioso. Severino é a restauração da estupidez nacional, o maior perigo para a reeleição de Lula. Severino é o retorno do reprimido, nossa cara antes da plástica que a modernidade parecia ter feito. Severino traz de volta a caricatura nacional que estava oculta pelos ternos Armani dos tucanos e pelos rostos barbudos dos petistas. Severino é a cara do Brasil.

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