O descaso do governo com o IBGE
SÉRGIO BESSERMAN
Quando o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Tony Blair, tomou posse, comprometeu-se com uma plataforma progressista de oito reformas constitucionais de enorme importância, como a criação do Parlamento escocês, a eleição direta para o cargo de prefeito de Londres e a reforma da Casa dos Lordes.
O primeiro ponto desse programa era: “Liberdade de informação e um Instituto Nacional de Estatística independente”. O Instituto Britânico havia sido negligenciado na gestão ultraliberal da sra. Margaret Thatcher.
A autonomia e a credibilidade do instituto oficial de estatísticas são excelentes termômetros do grau de civilidade do processo político mas a construção de uma democracia substantiva é um longo e difícil processo.
O IBGE definiu sua missão na seguinte forma: “Retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento de sua realidade e ao exercício da cidadania.” Embora análoga à forma como o fazem os melhores institutos do mundo, a explicitação do exercício da cidadania na sua missão é uma particularidade brasileira e reflete a compreensão de que numa sociedade como a nossa, conhecer é uma condição para transformar.
No Brasil, a democracia tem dado largos passos desde a Constituinte de 1988 e o IBGE chegou ao novo século com uma produção de alta qualidade segundo os parâmetros internacionais, com a reputação e a autonomia de um órgão que é do Estado antes de ser do governo e com grande credibilidade na sociedade.
Nos anos do governo Fernando Henrique Cardoso, o IBGE caminhou com firmeza no sentido da institucionalização de suas relações com a sociedade e o governo, solidificando assim sua credibilidade e sua independência técnica para além da produção de informações, isto é, nas suas relações e comunicação com a mídia e a cidadania.
Seguindo os melhores procedimentos internacionais, ministros de Estado e mesmo o sr. presidente passaram a receber os resultados das pesquisas conjunturais às 7h30m da manhã, com apenas duas horas de antecedência em relação à abertura dos mercados e à divulgação pública. O acesso e a disseminação relativa aos dados mensais do IBGE se tornaram totalmente isonômicos para qualquer indivíduo, organização ou instituição.
Com relação às pesquisas estruturais (PNAD, POF e outras), o IBGE passou a entregar os resultados à imprensa, sob compromisso de embargo, vários dias antes da divulgação. Nesse período os técnicos do IBGE atendiam aos jornalistas e clarificavam o significado das informações. A mídia aproveitou extraordinariamente bem a oportunidade e a cobertura das estatísticas no Brasil e passou a ter uma pluralidade e qualidade que se distinguem na imprensa mundial. Um grande avanço para um exercício democrático da cidadania .
Não obstante, o atual governo decidiu retroceder na antecedência com que as autoridades recebem as pesquisas conjunturais (que passou a ser de 24 horas) e instituiu um prazo de 48 horas de antecedência para as pesquisas estruturais. Os técnicos do IBGE só podem prestar esclarecimentos após a divulgação pública, devendo manter o sigilo , sob a ameaça das penalidades da lei.
Afora a afronta aos servidores, que não precisam de uma portaria que lhes recorde o princípio sagrado do sigilo. A questão que importa não é a antecedência com que o governo receberá as informações, que poderia ser maior do que 48 horas.
A questão é o espírito profundamente antidemocrático de uma decisão que pretende, inequivocamente, introduzir os interesses do governo federal nas relações entre o IBGE e a imprensa, contaminando a autonomia na disseminação dos dados.
Isso ocorre no momento em que a contagem populacional de 2005 foi suspensa por falta de recursos e que o Censo Agropecuário, já adiado para 2007, está seriamente ameaçado.
A atual direção do IBGE está firmemente comprometida com as “melhores práticas estatísticas”, mas não há como negar que, por parte das autoridades governamentais, há um certo descaso ou falta de compreensão com relação ao apoio institucional e de recursos necessários ao cumprimento de sua missão, que é decisiva para o futuro democrático do Brasil.
É uma pena o retrocesso. Deveríamos continuar avançando. O IBGE precisa de um orçamento plurianual para valer, porque a produção estatística é trabalho de anos, não de meses. E o Brasil precisa de uma nova Lei do Sistema Estatístico Nacional (a vigente é dos anos sessenta) que redefina e garanta o sigilo estatístico à luz da revolução tecnológica, que impulsione a produção estatística e a melhoria dos registros administrativos, de estados, municípios e outros órgãos federais sob a coordenação do IBGE (harmonização e comparabilidade definem o valor das estatísticas no mundo globalizado) e que dê formatação institucional à indispensável autonomia do órgão.
SÉRGIO BESSERMAN é diretor do Instituto Pereira Passos e foi presidente do IBGE.