A desintegração da União Soviética abalou seriamente a tradicional dicotomia que, desde a Revolução Francesa, dividia o cenário político em dois campos nitidamente diferenciados.
A partir de então, vai se tornando consensual a certeza de que, no mundo atual, não existem alternativas válidas ao Estado democrático de Direito, no terreno político, e à economia de mercado, na esfera econômica. Ficam reduzidos à condição de sobreviventes nostálgicos, sem perspectiva de poder, aqueles que ainda acreditam na revolução como meio e no socialismo como fim. Afirmação que faço como constatação, sem juízo de valor e sem desejo de polemizar. Afinal, cada um tem o direito de acreditar no que quiser.
Se ser de esquerda é lutar pela republicanização do aparelho estatal, ser de direita será praticar o velho patrimonialismo |
Mas, à exceção desses, os esquerdistas de todo o mundo, Brasil no meio, não se iludem quanto à falta de alternativas e buscam, perplexos, um caminho e uma identidade, muitos a se perguntarem se ainda faz sentido a velha dualidade.
Parece-me importante travar e aprofundar essa discussão em nosso país, quando nada para que desapareça a confusão atual e as posições voltem a adquirir nitidez no espectro político. Por isso, trago hoje a minha modestíssima contribuição ao debate, apenas para provocá-lo, portanto, de forma despretensiosa e sem preocupações metodológicas ou conceituais.
Entendo que a validade ou não da divisão dicotômica entre esquerda e direita depende do contexto. A mim parece claro que não mais se justifica a não ser por apego à tradição nos países do chamado primeiro mundo, que já alcançaram o estágio de equilíbrio sistêmico. Vale dizer, países de sólidas instituições políticas, de economias maduras e que lograram eliminar a extrema pobreza. Nesses, a disputa política deixou de ser ideológica, para se travar em torno de personalidades e/ou prioridades de governo. Os programas são tão semelhantes que, se mudados os rótulos dos partidos, seria impossível distinguir os destros dos canhotos.
Não é assim nos países menos desenvolvidos, mesmo nos emergentes, como o Brasil, nos quais prevalece talvez a dicotomia, tendo em vista que subsistem graves problemas políticos, econômicos e sociais, a permitir diferentes caminhos para a sua superação. Mas, admitida a validade da díade, resta definir o que é ser de direita ou ser de esquerda, excetuados os radicais, autodefinidos pelo apego às fórmulas do passado.
A questão se complica ainda mais se considerarmos que, além do consenso quanto aos sistemas político e econômico, começa a haver também concordância geral quanto à política macroeconômica fiscal, monetária e cambial, com divergências mais de grau do que de natureza. Tantos consensos políticos tornam um desafio responder à pergunta: afinal, no Brasil de hoje, o que é ser de esquerda? Haverá obviamente muitas respostas.
Na minha visão, ser de esquerda, no Brasil contemporâneo, é ser republicano. Não no sentido estrito de partidário da república como forma de governo, em contraposição à monarquia, mas no sentido etimológico, muito mais abrangente. Ser republicano é ter uma postura de respeito à coisa pública, encarada como instrumento de realização do bem comum. Em nosso país, teria um conteúdo revolucionário a republicanização do Estado, vítima de um processo de privatização que já dura quase 500 anos. Implicaria uma profunda mudança institucional e cultural no âmbito do Estado e da sociedade. O aparelho estatal teria de ser regido rigorosamente pelos princípios constitucionais da moralidade, da impessoalidade e da eficiência. Nos três Poderes.
O Executivo, liberto do aparelhamento partidário e tocado por um corpo profissional, recrutado e motivado pelo sistema de mérito, seria um efetivo provedor de bons serviços para toda a população.
O Legislativo, liberado das medidas provisórias e escoimado do fisiologismo, seria um efetivo legislador e fiscal do governo.
O Judiciário, expungido do corporativismo e do formalismo, seria efetivamente uma instituição a serviço da Justiça, levando a prestação jurisdicional até os excluídos.
Essa utopia possível, a um tempo tão simples e tão difícil, só poderia ser realizada por um movimento político com forte enraizamento na sociedade, conduzido por líderes respeitáveis, movidos por um inarredável compromisso ético e por um profundo senso de responsabilidade social.
Mas, se ainda existe uma esquerda, obviamente haverá de existir uma direita. Então, perguntar-se-á: como defini-la? Não será em termos teóricos. Com as transformações históricas, a velha esquerda petrificou o pensamento e a nova não conseguiu elaborar outro. Quanto à direita, simplesmente deixou de pensar, talvez por desnecessidade.
Creio que a definição se fará, em termos práticos, em torno da postura diante do Estado. Se ser de esquerda é lutar ativamente pela republicanização do aparelho estatal, vale dizer, pela sua desprivatização, ser de direita será praticar o velho patrimonialismo, estudado por Octávio Paz e Raymundo Faoro, que consiste em confundir o público com o privado.
Em suma, no Brasil de hoje, direita é sinônimo de patrimonialismo, e esquerda, de republicanismo.
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