segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Folha de S.Paulo Denis Lerrer Rosenfield: Cachaça e escravidão - 21/02/2005

Alguns perseveram numa estranha desatenção para com a escravidão dos negros, como se ela não chocasse


Uma das páginas mais abjetas da história da humanidade e, em particular, do Brasil, foi escrita pela escravidão. Durante séculos, nosso país se caracterizou pela exploração dos índios e dos negros, tornando-os meros instrumentos de trabalho, do mesmo tipo que os animais que faziam o trabalho da lavoura. A humanidade lhes era negada, como se existissem bípedes falantes que não pertenciam ao gênero humano. Essa situação, durante esse longo período de trevas, foi considerada normal e constituía o quadro das coisas cotidianas. Alguns pintores retrataram admiravelmente essa cena nada pitoresca. Ela não chocava, pois, de certa maneira, fazia parte do senso comum daquela época, por mais incomum que a nós possa parecer.
Assinale-se também que nosso país foi um dos últimos a abolir a escravidão, na qual comungavam, no Império, tanto os partidos de situação como os de oposição, salvo honrosas exceções individuais. Uma situação de tal tipo, moralmente condenável, continuava sendo economicamente justificada e juridicamente permitida. Foi necessário um longo e laborioso trabalho de formação da opinião pública para que as cadeias da escravidão fossem abolidas, embora os seus efeitos se façam sentir até hoje, numa espécie de dívida não paga. Contudo alguns perseveram numa estranha desatenção para com a escravidão dos negros, como se ela não chocasse e fizesse parte, por assim dizer, do nosso próprio senso comum.
Gostaria de relatar um fato anódino, porém espantoso -como podem nos causar horror antigos fantasmas que rondam o presente. Estando num grande supermercado, procurei por uma cachaça envelhecida. Qual não foi a minha surpresa quando me deparei com uma garrafa de uma conhecida empresa nacional que estampava, no seu rótulo e na sua caixa, escravos negros moendo cana de açúcar. Em trajes maltrapilhos, torsos nus, faziam rodar uma máquina que permitia extrair o precioso líquido. A imagem mostrava a fabricação da cachaça por pessoas que estavam acorrentadas a esse tipo de situação, fazendo rodar, como meros instrumentos animais, uma máquina que moía também as suas próprias vidas. Do bom gosto da cachaça, tive o desgosto de uma tal apresentação comemorativa.
A data de comemoração é significativa. A firma em questão festeja 150 anos e não encontrou melhor fórmula para comemorar do que relembrar o modo mediante o qual, nos tempos da escravidão, essa aguardente era produzida. A memória é um poderoso instrumento da história, sobretudo porque permite que erros não sejam repetidos e que o moralmente condenável não seja esquecido. Um povo que assim trabalha a sua história torna-se consciente do seu passado e abre, no presente, novas vias para o seu futuro. Isso supõe, porém, que não haja comemoração do moralmente condenável, mas memória do que não pode mais povoar o nosso presente.
Quando o rótulo da garrafa de uma cachaça é utilizado para comemorar o aniversário de uma empresa, recorrendo ao que é moralmente condenável, ele não passa a mensagem do tempo de maturação de um produto, mas a da persistência do abjeto, do tempo que não passou, do que continua, de certa forma, legitimado. Será que o suor, a dor e a penúria de escravos negros são a melhor apresentação da qualidade de um produto? Alguém pode se comprazer com o gosto de uma bebida contemplando uma tal servidão?
Uma sociedade avança quando suas idéias morais entram de tal maneira em seu senso comum que tais imagens não poderiam mais aparecer para a venda de um produto, pela repulsa que causariam. O que choca numa tal apresentação desse produto é que ela foi elaborada por publicitários que "bolaram" algo diferente com a abjeção alheia e essa idéia "genial" foi indevidamente comprada pelos donos e dirigentes da empresa em questão. O que choca é que ela continua à venda sem provocar escândalo. O que choca é que ela não choca.
De minha parte, fiquei embriagado -do choque que recebi. O sabor de uma bebida de qualidade deu lugar ao dissabor de presenciar uma tal cena, perdido que estava entre outras pessoas nos corredores de um supermercado. Deixei a garrafa onde estava. Espero que outros também o façam. Gravei, em minha memória, a sua imagem e escrevi o presente artigo, esperançoso de que outros também se indignem. Fica uma sugestão: por que essa empresa não retira essas garrafas de circulação e dá provas de que não compartilha do moralmente condenável?

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