TRAGÉDIA BRASILEIRA
Encenou-se anteontem em Goiânia mais uma dessas tragédias das quais já se sabe com antecedência que as ações dos diversos atores irão engendrar um desenlace chocante. Uma tropa de 2.000 homens foi mobilizada para cumprir sentença judicial que determinava a remoção de 4.000 famílias de um terreno particular por elas ocupado. O confronto deixou dois sem-teto mortos e 24 pessoas feridas -quatro delas, policiais. O saldo do episódio, todavia, não se esgota na contagem das vítimas.
Houve excessos por parte da polícia, que precisam ser apurados, e faltou às autoridades persistência e capacidade para encontrar uma saída negociada, que evitasse o previsível espetáculo de violência.
Da parte dos sem-teto, é evidente que houve desrespeito à propriedade e que a desocupação teria de ocorrer. É forçoso, entretanto, reconhecer que a batalha travada em Goiânia é uma decorrência natural do "apartheid" social que cinde o país, cronicamente incapaz de encaminhar soluções para seus problemas básicos.
O que torna esses enfrentamentos não apenas possíveis e freqüentes, mas praticamente inevitáveis, é a concentração da propriedade e o abandono a que foram relegadas, por seguidas administrações, as políticas habitacionais voltadas para populações de baixa renda.
Pelo menos duas circunstâncias têm contribuído para esse quadro: as restrições financeiras decorrentes dos elevados gastos governamentais com o pagamento de juros da dívida pública (foram cerca de R$ 130 bilhões no ano passado) e a perigosa tendência de resumir as políticas sociais a programas de renda mínima -ou seja, à distribuição paliativa de donativos com o intuito de tornar um pouco menos exasperantes para os miseráveis os efeitos da desigualdade e do baixo padrão de crescimento econômico.
O que o conflito de Goiânia, ao lado de tantos outros que eclodem no Brasil, deixa a nu não é nenhuma novidade. O tempo passa e o país continua a girar em falso nos esforços de moldar uma sociedade mais equilibrada e menos injusta.
O SINDICATO DE SEVERINO
Num dos raros casos em que seria melhor o eleito abandonar seus compromissos de campanha, o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) faria bem se desistisse de promover os aumentos salariais que prometeu durante a disputa pela presidência da Câmara. Infelizmente, já em sua primeira entrevista, o deputado reafirmou o propósito de elevar de R$ 12.847,20, para R$ 21.500 mensais os vencimentos de seus colegas.
A promoção salarial anunciada corresponde a um acréscimo de 67,35% -algo inconcebível para qualquer categoria do setor público ou privado. O despautério é defendido por Severino Cavalcanti com um conveniente sofisma: ele estaria apenas "aplicando a Constituição". Ora, o texto constitucional (art. 37, atualizado pela Emenda 41, de dezembro de 2003) fixa um teto para a remuneração no setor público -o salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Em nenhum momento, contudo, determina que o limite deva ser aplicado aos deputados federais.
Esta Folha considera que ocupantes de cargos públicos devem ser bem remunerados para desempenhar suas funções. É preciso lembrar, todavia, que os deputados federais não recebem apenas seus vencimentos. Eles têm direito a verba de gabinete, cota telefônica e de correio, além de auxílio moradia e quatro passagens aéreas por mês. Tudo somado, cada um deles custa mensalmente ao país R$ 70.125,75. Considerando os 513 deputados, esse total vai a cerca de R$ 36 milhões.
É à luz desse número que a questão salarial da Câmara deve ser debatida. É flagrante que o Legislativo é uma estrutura custosa e perdulária, cujas despesas podem -e devem- ser cortadas. Não seria tarefa difícil para nenhum administrador identificar os excessos ali cometidos.
Eleito com base em promessas corporativas, Severino Cavalcanti vem atuando como se fosse o presidente de um oficioso sindicato dos representantes do povo. Quer recompensar com dinheiro do contribuinte o "baixo clero" que o elegeu. Com isso, inicia de maneira lastimável o biênio durante o qual terá a responsabilidade de comandar a Câmara, exercendo o papel de uma das principais autoridades da República.
SAÍDA PARA OS CEUS
O prefeito José Serra (PSDB) propôs ao governo estadual que utilize as instalações dos CEUs (Centros de Educação Unificados) para as atividades do programa Fábricas de Cultura -um projeto do Estado voltado para jovens que residem em áreas de baixa renda da cidade de São Paulo.
A idéia é reduzir a exposição dessas pessoas à violência, incentivando a prática de atividades culturais -desde aquelas que já fazem parte do repertório desses jovens até as que lhes são pouco familiares. O programa conta com financiamento do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e só deverá ser implementado a partir de 2006.
Sem os CEUs, construídos na gestão de Marta Suplicy, o programa exigiria investimentos em instalações. Com as estruturas e equipamentos já existentes no município -e nas áreas para as quais dirige-se o projeto estadual- seria mais sensato unir esforços. Depois do período de aulas, as salas, o cinema e o teatro poderiam ser utilizados pelo Estado. Um exemplo de integração entre as duas esferas de governo, a parceria também teria a vantagem de tornar menos custosa para a cidade a manutenção dos CEUs -que hoje está em torno de R$ 700 mil por mês.
Além disso, o entendimento reforçaria o que parece ser o principal papel dessas escolas -servir como centro de convivência e irradiação de cultura nas periferias da cidade. Segundo a prefeitura, técnicos do BID já se manifestaram a favor da idéia, restando agora levar adiante os entendimentos com o governador.
Vale observar que parcerias como essa poderiam ter sido realizadas desde a gestão passada. Lamentavelmente, interesses e desavenças políticas quase sempre prevalecem sobre o interesse público.
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