domingo, agosto 15, 2004

A persistência no arbítrio

DORA KRAMER


Garimpando a pesquisa CNT/Sensus de junho, o PPS descobriu o seguinte dado: consultadas 2 mil pessoas sobre liberdade de imprensa, 65% delas disseram que estão satisfeitas com o nível de liberdade de expressão existente no país. As que se declararam desconfortáveis com o ''excesso'' de independência somaram 18%.
Ainda que não compartilhe dessa convicção democrática, até por uma questão de prática de respeito à maioria, conviria ao governo arquivar de vez as tentativas de criar restrições ao trânsito de informações.
Não dá certo e continuará dando errado, pois já ficou demonstrado que as ações governamentais de repercussão mais negativa - interna e externamente falando - foram todas relativas ao tema.
Não se sustenta o argumento ouvido aqui e ali, segundo o qual isso se deve à reação corporativa dos veículos de comunicação e dos jornalistas responsáveis pelo noticiário, porque a rejeição às limitações está claramente expressa nas manifestações de cartas de leitores e de instituições não diretamente ligadas ao ofício da comunicação.
Donde a conclusão óbvia de que a liberdade de imprensa, assim como a estabilidade econômica, é um valor coletivo já plenamente consolidado e do qual a sociedade demonstra que não abre mão.
Na questão da estabilidade, os que estão agora no poder demoraram, mas feliz e finalmente compreenderam que o conceito não tem dono, não pertence a governos, a partidos nem a ideologias: é fator de bem-estar comum e pressuposto inamovível de qualquer país com razoáveis pretensões ao desenvolvimento e à organização institucional.
Em relação à livre ação e pensamento, no entanto, o breve, mas consistente, histórico desse governo no assunto - e aqui incluem-se vários casos, desde a primeira tentativa de impor critérios oficiais à concessão de patrocínios culturais, até os casos em curso, passando pela tentativa de cassar o visto do jornalista do New York Times - não aconselha otimismo no tocante à impossibilidade de novas tentativas autoritárias.
Aos indicadores: há um padrão de comportamento pelo qual, num primeiro instante, o governo reage em bloco contra as críticas, insistindo em suas razões. Num segundo momento, surgem discordâncias pontuais e, finalmente, vem o recuo.
Até que uma nova ofensiva não apenas repete os termos da proposta anterior, como os apresenta reforçados. Caso típico da questão dos limites aos patrocínios. O Planalto recuou, mas depois ampliou e detalhou o plano de controle sobre a produção cultural no projeto da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual. Manteve o fundamento e aprofundou os instrumentos de domínio do Estado.
Esses recrudescimentos ainda apresentam a agravante de conquistar adeptos entre os que antes faziam a crítica interna. Tomemos o caso do ministro Gilberto Gil, da Cultura.
No ano passado, ele reagiu consoante à sua biografia, postou-se contra o chamado ''dirigismo''. Agora, deu-se ares de surpreendente arrogância acusando os críticos da Ancinav de estarem contra o aperfeiçoamento da democracia e quererem transformá-lo de reprimido em repressor.
Compreende-se que um artista de inequívoco livre-pensar, como Gilberto Gil, se assuste ao se ver na berlinda desse tipo de debate. Mas, prestasse ele um pouco mais de atenção no tom e nas palavras que vem usando e perceberia que adotou - mesmo involuntariamente - o figurino absolutista.
Indignado com a avaliação vigente de que o governo, se pudesse, caminharia para trás no tocante à garantia das liberdades, Gilberto Gil declarou: ''Não acredito que o governo Lula vá acabar com a democracia, até porque eu não vou deixar''.
Força de expressão? Provavelmente, mas a frase soa de uma onipotência atroz. A democracia no Brasil persiste não por vontade nem ação individual de quem quer que seja, mas por categórica afirmação da cidadania.
Fenômeno parecido ocorre com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que salvou o governo do vexame completo no episódio Larry Rother, para meses depois achar normal a idéia de o Estado patrocinar proposta de determinar como será a atividade jornalística no Brasil e chancelar proibição a funcionários públicos de transmitirem informações sem autorização superior.
Diz ele que não aceita ''carapuça de censor'', rejeita a qualificação de ''mordaça'' na vigilância ao servidor e, como Gil, diz que não permitirá agressões às liberdades.
Mas aí é que está: as palavras dos ministros da Justiça e da Cultura, ou de qualquer outro integrante do governo, de nada servem no tocante à garantia da segurança democrática do país, se - a despeito das palavras - o que prevalece, e se repete com obstinada freqüência, é a propositura e a defesa de princípios com a indisfarçavél marca da arbitrariedade.
dkramer@jb.com.br
[15/AGO/2004]
Publicadoem: Sun, Aug 15 2004 1:19 PM