Ai, que saudades do comunismo... Esse surto de leninismo que incendiou a alma simples dos petistas ultimamente, esse ataque recente à “democracia burguesa” que o governo de Lula lançou contra a sociedade, a fome dos “soviéticos” de Gil, embuçados e severos contra o cinema e a TV, o putsch rápido e eficaz de José Mentor, lugar-tenente de Dirceu, que agora tem montado um arquivo de inimigos do regime, o gesto comovente de jornalistas da Fenaj de oferecer a própria cabeça numa bandeja para guilhotina da liberdade, o desejo de calar o Ministério Público para ele não atrapalhar as táticas do poder, também a idéia perfeita de lotear todos os cargos públicos com quadros do PT, pois eles são os peões da revolução, para que não façam mais o que faziam nos outros governos, isto é, enfiar narizes em arquivos, alcagüetar colegas, denunciar mamatinhas para o PT atacar FH, tudo isso, “gentem”, tudo isso, ao contrário do que sentem esses jornalistas neoliberais que denunciam os truques do governo Lula, tudo isso despertou secretamente em meu coração uma profunda saudade do comunismo.... Ah, como era bom o nosso comunismo...
Como um “Amarcord” vermelho, eu me lembro dos anos 60, durante a Guerra Fria... Ah, como era bom se sentir acima dos outros, não por competência ou cultura, mas por superioridade ética. Nós éramos mais “puros”, mais poéticos, mais heróicos que os meus colegas de PUC, todos já de gravatinhas adultas.
Eu, não. Eu era comunista. Andava mal vestido, com minha testa alta, barba leninista, assim feito o Genoino (Genoino, mesmo de frente, está sempre de perfil, aspirando a ser medalha), esse doce Genoino que disse que “esse negócio de cinema livre é pra privilegiados”. Eu era comuna assim como o Luís Gushiken (ele é a cara do Ho Chi Minh), que, depois de aparelhar os fundos de pensão e bancos, declarou com charme leninista que “liberdade não é absoluta”, lembrando-me (ohhh delícia!) do tempo bom em que eu citava Lenin em francês: “La Liberté, pour quoi faire?” (“Liberdade, pra quê?”).
Ahhh... eu me lembro de como era bom ser superior a um mundo povoado de “burgueses, caretas e babacas”, como eu classificava a Humanidade. E todo esse charme vinha sem esforço, sem estudar nada, bastava ler um ou outro livrinho da Academia da URSS, decorar meia dúzia de slogans e pronto, eu podia andar com minha camisa de marinheiro aberta ao vento e “vogar” por Copacabana, olhando em volta a população de “alienados”, trabalhando em suas vidas medíocres, enquanto meu mundo era mais além.
Ahhh... que saudades das sacanagens de esquerda, quando eu cantava as gatinhas (várias que o José Dirceu comeu, magrinho, belo e radical), meninas sem a maquiagem burguesa, a quem eu lançava a cantada infalível: “Não seja ‘pequeno-burguesa’ e entra aí no ‘aparelho’, meu bem...” Lembro também da noite mágica em que declarei no terraço da UNE a uma namorada que “nosso amor também era uma forma de luta contra o imperialismo”.
Ahhh.... como eu amava os operários, futuro da Humanidade. Nas oficinas do jornal comuna que eu fazia, crivava-os de perguntas e agrados, sendo que os ditos operários ficavam desconfiados e pensavam que eu era veado e não um fervoroso comunista...
Como me alegrei quando Mao Tse-tung proibiu Beethoven na Revolução Cultural, pensando: “Claro, temos de raspar tudo que a burguesia inventou e começar de novo”, um mundo novo feito de agricultura e homens fardados de cinza, rindo felizes, oligofrênicos unidos pelo bem...
Ahhh... como era bom ignorar as neuroses pequeno-burguesas de minha mente, pois eu não era um deprimido nem narcisista nem nada; eu era apenas um comunista saudável como um cartaz de balé chinês. Amava as reuniões secretas, muito cigarro e a sensação de viver uma missão profunda. As discussões sem fim: “questão de ordem, companheiro!”, “o companheiro está numa posição revisionista” ou “a companheira está sendo reacionária em não querer dar para mim”.
E a beleza de não ter um tostão e pedir dinheiro à mãe ou roubar do paletó do pai... ( milico reaça) para comprar Marlboro de contrabando (meu secreto pecado), não ter um puto e se orgulhar disso, na convivência dos botequins, olhando os operários bêbedos e pensar, no cafezinho: “Um dia eles serão ‘homens totais’, ‘sujeitos da História’”, enquanto os mendigos vomitavam no meio-fio, gente que eu chamava com desprezo culto de “lumpens”.
Que saudades... Tudo era possível — bastava convencer o proletariado que os burgueses malvados, aliados ao latifúndio improdutivo e dominados pelo imperialismo americano, eram a causa de seus males, pois aí os proletários conscientizados tomariam o poder, organizados por nós, e tudo seria perfeito e bom. Por isso, eu tenho hoje tanta saudade do simplismo e da generosa burrice que nos assolava.
E depois, quando a barra pesou de 68 em diante, não mais a suave ditadura de Castelo Branco nem o rosto boçal de Costa e Silva, mas a dura frieza da Era Médici? Quanto me lembro do sentimento de ser uma “vítima” real da ditadura, fugindo da morte, ajudando os reais suicidas que faziam a guerra urbana, achando que iam derrotar o Exército com meia dúzia de revólveres e assaltos a banco? Ahh... mesmo na tragédia daqueles dias, senti a delícia meio religiosa de ser uma vítima “santificada” da violência da direita, e isso me enobrecia, acima sempre dos “babacas, burgueses e caretas”. Muitos morreram.
Um dia, um companheiro me disse: “Não tema a morte. Marx disse que somos seres sociais. Assim, o individuo é uma ilusão. Para o comunista a morte não existe.” E eu sonhei docemente com a vida eterna.
Era bom... era lindo... Por isso, quando vejo o comissário da Casa Civil, Dirceu, comandando essa volta ao passado, esta retomada do bolchevismo no governo PT, não me horrorizo, nem denuncio, nem reclamo, como fazem esses jornalistas burgueses neoliberais vendidos aos patrões. Ao contrário, tenho vontade de chorar...
Publicadoem: Tue, Aug 17 2004 10:32 AM
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