sábado, junho 27, 2009

Veja Entrevista Leonardo Nascimento de Araújo


Bolas murchas em gestão

O técnico do Milan diz que falta profissionalismo aos clubes 
brasileiros, que não existe substituto para Ricardo Teixeira
na CBF e que a Copa deve ser mais do que uma festa


Kalleo Coura

Vctor Sokolowicz

"O futebol brasileiro 
está fora do mercado. 
Que clube planeja 
seu futuro? Nenhum. 
A maioria está quebrada"

Não há, no futebol brasileiro, trajetória como a do ex-jogador Leonardo. Ex-garoto-prodígio do Flamengo no período áureo de Zico, ex-meia do São Paulo quando o time conquistou o segundo Mundial Interclubes e tetracampeão com a seleção brasileira em 1994, ele começou aos 22 anos seu giro pelo mundo. Morou na Espanha, contratado pelo Valencia; no Japão, pelo Kashima Antlers; na França, pelo Paris Saint-Germain; e, finalmente, na Itália, pelo Milan, onde jogou por sete anos. Em 2003, pendurou as chuteiras, mas não tirou o time de campo: aprendeu sobre gestão e foi por seis anos executivo do clube milanês. Agora, aos 39 anos, acaba de ser nomeado o seu novo técnico. Antes dele, só Vanderlei Luxemburgo e Luiz Felipe Scolari haviam comandado equipes de porte semelhante na Europa. A VEJA, Leonardo falou das deficiências do futebol brasileiro, da Copa de 2014 e, claro, de seu percurso.

O senhor tornou-se treinador do Milan num momento complicado: o zagueiro Maldini acaba de encerrar a carreira, Kaká foi vendido ao Real Madrid, Ronaldinho Gaúcho passa por uma fase ruim e o clube anunciou que terá de reduzir em 30% a verba destinada ao salário dos atletas. Como pretende lidar com isso? Depois de um ciclo de oito anos com o Carlo Ancelotti (ex-treinador do Milan) no comando, é normal que haja agora um momento de reestruturação. Na Itália, os estádios estão arrecadando um quinto do que se arrecada na Alemanha ou na Inglaterra e os clubes gastam até 70% do orçamento com o pagamento de jogadores. Como não é possível reduzir salários, estamos reduzindo nosso plantel. Atletas jovens com muita fome de jogar terão de aparecer. Não há outro jeito.

Kaká fará muita falta ao time? Ele faria falta em qualquer time. Estamos falando do melhor jogador do mundo. O Kaká tem uma objetividade e uma efetividade impressionantes. É fisicamente muito forte e, além disso, carismático. E olhe que já mantém tudo isso há seis anos. Uma coisa é ser um fenômeno durante um ou dois anos. Outra é jogar no mais alto nível durante dez anos seguidos. O Kaká conseguirá esse feito.

O primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, que também é dono do Milan, disse que o desempenho do partido dele nas eleições europeias foi prejudicado pela venda de Kaká. É verdade que ele pediu ao Real Madrid e ao jogador que postergassem o anúncio da venda? Sinceramente, não sei. Esse assunto é muito complicado... Acho que a devida distância entre o clube e a política vem sendo mantida. O clube tem vida própria, independência e também um gestor do dia a dia, que é o (vice-presidente) Adriano Galliani.

Berlusconi culpou publicamente o ex-técnico Ancelotti pelo fraco desempenho do time no campeonato italiano. Ele é um patrão difícil? Não. Ele é um sonhador. É um presidente atuante e apaixonado – é torcedor do Milan desde que nasceu e gosta de ver a equipe vencendo com um jogo bonito. Minha relação cotidiana será com o Galliani, mas, quando for preciso, conversarei com Berlusconi também. Já jantamos juntos. Meu relacionamento com ele é ótimo, mas é apenas profissional.

O envolvimento de craques brasileiros em confusões fora de campo afeta a imagem dos atletas do país na Europa? A imagem, propriamente, não. Até o começo da década de 90, ninguém queria saber de nossos jogadores na Europa. Foi só nos últimos dez anos que Ronaldo, Kaká, Ronaldinho, Adriano, Robinho e Roberto Carlos passaram a fazer parte de todas as listas de melhores do mundo – e os brasileiros tornaram-se uma referência nos gramados da Europa. Ao mesmo tempo, o futebol cresceu como indústria e esses jogadores começaram a ser vistos como estrelas, quase como os Rolling Stones ou o Tom Cruise. Não é fácil equilibrar essa nova dimensão com o esporte. O problema é que esporte é rendimento. E, se você perder o autocontrole e o foco, no dia seguinte já não será o mesmo. Veja o caso do Adriano: ele tem apenas 27 anos e está jogando no Flamengo, longe de um grande centro do futebol, portanto. Com essa idade, deveria estar na Itália ou na Espanha – e não está.

Como o senhor investiu o dinheiro que ganhou durante a sua carreira de jogador? Em imóveis e ações. Levo uma vida ótima, mas não cara. Não gasto muito, não.

"Sentia culpa ao comprar
roupas, ao comer 
em restaurantes caros. 
Acho que tive uma 
depressão – eu me 
desfiz de muita coisa. 
Minha casa em Milão
ficou praticamente vazia. 
Não tinha nem 
computador mais"

É verdade que houve um período em que o senhor quis se desfazer de seus bens e chegou a doar parte deles a amigos? Isso foi quando eu tinha por volta de 30 anos, durante meu primeiro período na Itália. Passei por um momento psicologicamente ruim. Sentia culpa ao comprar roupas, ao comer em restaurantes caros. Em vez de me darem prazer, essas coisas me deixavam mal. Acho que tive uma depressão.

Teve sintomas físicos?Principalmente insônia. E também taquicardia.

De que tipo de bens o senhor se desfez? Relógios, carros, móveis?Sim, eu me desfiz de muita coisa. Minha casa em Milão ficou praticamente vazia. Não tinha nem computador mais. Quando precisava, pedia para usar o dos outros. Foi um momento de desequilíbrio emocional mesmo. Fiz terapia durante três meses. Minha ex-mulher, Beatriz, e os meus pais foram os que mais me ajudaram nessa fase. Também comecei a ler livros de filosofia e psicologia. Desse período nasceu a Fundação Gol de Letra (entidade de apoio a crianças carentes, que ele criou junto com o ex-jogador Raí). Mas até hoje não gosto de tocar nesse assunto.

O senhor foi executivo do Milan durante seis anos. Por que, na sua opinião, enquanto times como o Arsenal da Inglaterra chegam a lucrar 60 milhões de euros numa temporada, o Flamengo, por exemplo, só tem dívidas? O que há de errado no futebol nacional?O futebol brasileiro está fora do mercado. A atual estrutura dos clubes – associações sem fins lucrativos, geridas por um conselho que nem se sabe mais para que serve e por presidentes com mandato de três anos – não funciona. Que clube hoje no Brasil planeja seu futuro? Nenhum. A maioria está quebrada, tentando levantar dinheiro para pagar as contas do mês seguinte. É preciso buscar novas soluções.

Por exemplo? Transformar todos os clubes em empresas e vendê-los a grandes investidores. Hoje, o Flamengo dá prejuízo e nada acontece. Mas, se alguém tiver de pagar a conta, a situação pode mudar – talvez o clube passe a ser lucrativo.

E como os clubes se sustentariam? Com as suas marcas, é claro. As fontes de renda de um clube são: licenciamentos, merchandising, venda de ingresso para torcedores e venda de direitos de transmissão para a televisão. Se o clube melhorar sua gestão, tudo isso vai sair mais caro e, assim, render mais. Grandes empresas vão bater à sua porta, para patrociná-lo, como fazem aqui com o Milan. Se a Dolce&Gabbana não vier, a Armani virá no dia seguinte. Se não vier a Audi, talvez venha a Mercedes. Agora, quando você pensa no Flamengo, para ficar no nosso exemplo, qual o primeiro adjetivo que vem à cabeça? Tenho certeza de que é algo relacionado a insucesso. Por isso nenhuma marca quer se juntar a ele e é um trabalhão conseguir patrocinadores.

O fato de a CBF ter o mesmo presidente há vinte anos ininterruptos interfere no processo de modernização dos clubes?O Ricardo Teixeira não é o culpado por essa situação. Afinal de contas, são os clubes que votam nele. O Ricardo Teixeira sairia para dar lugar a quem? O fato é que não existe gestor para substituí-lo. Claro que a sua permanência contribui para a manutenção da atual estrutura do futebol brasileiro. Mas o quadro só vai mudar quando os clubes acordarem.

De onde surgiu o seu interesse pela gestão esportiva? Durante toda a minha carreira, negociei as cláusulas de meus contratos, administrei minhas finanças e fiz meus próprios investimentos, sem intermediários. Pensava muito mais em ser gestor do que em ser treinador quando parasse de jogar. Então, depois de várias conversas, dei indicações a Berlusconi e a Galliani de que era esse o caminho que queria seguir. Também fiz cursos de gestão, um deles na universidade italiana Luigi Bocconi (uma das mais prestigiadas escolas de administração da Europa). Gosto tanto de gestão que acho que este período como treinador será apenas um parêntese na minha carreira de administrador.

"Os jogadores passaram a ser vistos como estrelas da música ou do cinema. O problema é que esporte é rendimento. Se você perder o foco, no dia seguinte já não será o mesmo. Veja o caso do Adriano"

Acha que Ronaldo, o Fenômeno, deve ser convocado para a Copa do ano que vem? Depende do rendimento dele. Ele é mais do que um jogador de futebol, é um símbolo. Se conseguir equilibrar o que representa fora de campo com a atuação nos gramados, ele se tornará uma peça muito importante. O Brasil inteiro quer vê-lo vestindo a camisa da seleção. Se ele tiver a mínima condição de jogar, acho que deve estar entre os quatro atacantes convocados. Não temos um ataque pronto ainda na seleção. Se tivéssemos, talvez o Ronaldo não tivesse chance de ser convocado. O Adriano ainda está se recuperando e o Alexandre Pato está se desenvolvendo. Talvez o Luís Fabiano hoje esteja melhor, mas ainda falta algo no conjunto.

O Brasil está preparado para sediar a Copa? Claro que temos inúmeras dificuldades. Há muita coisa a ser feita, mas não tenho dúvida de que somos capazes de organizar uma boa Copa. Agora, se quisermos fazer do torneio só uma festa, não evoluiremos. Os melhores estádios da Europa são os alemães, onde os jogos da Copa de 2006 foram realizados. Hoje, graças ao fato de serem arenas multifuncionais, o faturamento deles é até cinco vezes maior do que antes da competição. Se tivermos um projeto parecido, não só o esporte pode ganhar um impulso forte, mas o Brasil como um todo também. Precisamos modernizar não apenas estádios, mas aeroportos, estradas, hospitais. A Copa tem de ser encarada como um investimento nacional.

Em quase vinte anos de carreira, o que o futebol lhe deu de melhor? O futebol me proporcionou morar em vários países e conhecer diversas culturas. Morei na Espanha, no Japão, na França e na Itália.

Os fãs japoneses são bastante diferentes dos brasileiros, não?São muito diferentes. Quando morei lá, eram principalmente mulheres. Ficavam na porta da minha casa, me davam presentes e choravam quando me viam. Algumas meninas apareciam todas as semanas e ficavam lá o dia inteiro, mesmo chovendo torrencialmente. Não adiantava pedir que fossem embora – elas continuavam lá, na chuva. Não queriam nada em troca, além de demonstrar carinho. Ganhei muitos presentes: objetos ligados à cultura budista, camisas, origamis, cartões e até um carro. Não pude recusá-lo, seria considerado mal-educado. Até hoje sou admirado por lá. No Ocidente, a fama passa. No Japão, permanece.

E a torcida italiana? É tão passional quanto a brasileira? É diferente. Os torcedores italianos são mais bem informados do que os brasileiros. Eles sabem a escalação, conhecem táticas e estão inteirados sobre as características de cada jogador. No Brasil, não é tanto assim. Em contrapartida, a expressão da paixão do torcedor brasileiro não se compara com a de nenhum outro. Nenhum estádio do mundo proporciona a emoção de um Maracanã ou Morumbi lotado. É uma sensação indescritível.