sexta-feira, março 31, 2006

Iniqüidade penal

EDITORIAL DE O ESTADO DE S PAULO
Iniqüidade penal

Em vez de se destinar a presos reincidentes e de alta periculosidade, o sistema prisional brasileiro vem sendo ocupado cada vez mais por autores de pequenos delitos. O caso do Cadeião de Pinheiros (Dacar 4), como mostrou reportagem de Rosa Bastos, no Estado de domingo, é exemplar. 30% das mulheres que hoje se encontram ali detidas estão sendo processadas ou já foram condenadas por terem furtado ou tentado furtar vidro de esmalte, xampu, fraldas, queijo, doce de leite, chocolate, caixa de chá, suco em pó, bolacha e outras ninharias.

Além de trancafiar um número cada vez maior de autores de crimes eventuais e sem potencial ofensivo, o sistema prisional dispensa a todos eles um tratamento degradante. Nenhuma das presas, no Cadeião de Pinheiros, recebe pasta de dente, papel higiênico e absorventes. Nas celas, cuja maioria não tem colchão e lençol, amontoam-se 25 presas em condições degradantes.

A reportagem do Estado mostrou o caso, que pode ser considerado emblemático da crise do sistema jurídico-judicial, no âmbito criminal, da doméstica de 18 anos que passou quatro meses presa no Cadeião de Pinheiros em condições absolutamente degradantes, por ter tentado furtar uma lata de manteiga no mercado de seu bairro, na zona leste. Para conseguir o benefício de aguardar o julgamento em liberdade ela precisou entrar com seis pedidos de habeas-corpus. Os cinco primeiros foram recusados pela Justiça estadual e o que foi acolhido teve de ser impetrado em Brasília, a mil quilômetros de distância de São Paulo.

Esse caso revela a insensibilidade de juízes que mantêm encarcerados por longo período homens e mulheres pobres detidos pela prática de pequenos furtos. O mais grave é que o congestionado sistema prisional não tem condições de receber esses presos. Embora o Cadeião de Pinheiros tenha sido projetado para acolher só as pessoas que aguardam o julgamento de seus crimes, lá também se encontram mulheres já condenadas, que deveriam estar cumprindo pena numa penitenciária, onde poderiam trabalhar e estudar, usufruindo direitos assegurados pela Lei de Execução Penal. Das 1.360 mulheres presas no Cadeião, 700 estão em situação ilegal.

As autoridades estaduais reconhecem a superlotação, mas alegam em sua defesa que a situação só poderá ser atenuada quando for concluída a reforma da antiga Penitenciária Feminina. Já o promotor responsável pelo caso da doméstica que tentou furtar uma lata de manteiga afirma que "roubo é roubo" e que, "se afrouxar, vira baderna".

De fato, se todo delito de menor gravidade for tratado com leniência pelo Ministério Público e pela Justiça, o afrouxamento na aplicação das leis penais pode levar à disseminação ainda maior do sentimento de impunidade, que contribui para o aumento dos já altíssimos índices de criminalidade. Mas ser rigoroso na aplicação de uma lei não significa mandar obrigatoriamente para a prisão quem delinqüiu, independentemente da gravidade da infração. Para evitar isso, o direito prevê punições diferenciadas - das penas alternativas às penas privativas de liberdade.

Previstas para pequenas infrações praticadas por réus primários, as penas alternativas não são sinônimo de impunidade. Ao contrário, são punições com comprovada eficácia educativa e que ajudam a descongestionar as prisões, abrindo vagas para os autores de infrações graves e criminosos de alta periculosidade. Dos condenados a penas alternativas, só 12%, em média, voltam a delinqüir. Entre os que cumprem pena privativa de liberdade, 80% reincidem no crime. O problema das penas alternativas é que, apesar de terem sido introduzidas na legislação há mais de 20 anos, muitos promotores e juízes se recusam a adotá-las. O resultado inevitável é a superlotação das prisões e sua conversão em verdadeiras usinas de revoltas e rebeliões.

É sobre isso que as autoridades judiciais deveriam refletir, para não confundir rigor na punição de autores de pequenos furtos com encarceramento e para tentar restabelecer em nosso sistema prisional aquilo que ele perdeu há muito tempo: o respeito à dignidade da pessoa humana.