sexta-feira, março 31, 2006

È arrivato il baritono?

ESTADÃO

Dionísio Dias Carneiro*

A despedida do ministro Antonio Palocci foi melancólica.

Os últimos esforços para preservá-lo expuseram, de modo dramático, o duplo padrão de seriedade adotado pelo governo petista no episódio da invasão de privacidade do caseiro. Os analistas políticos e as pesquisas de opinião serão capazes de avaliar os eventuais danos eleitorais que o episódio causará a Lula. Mas, em contraste com a conhecida anedota popularizada por Mário Simonsen ao deixar o governo Figueiredo, dessa vez o criticado tenor não deixou o palco em meio às vaias, amaldiçoando a platéia com o barítono. Talvez porque a platéia já conheça o barítono e os aplausos sejam apenas protocolares, não esperançosos.

A decepção é geral, para governistas e oposicionistas. Talvez porque Palocci tenha abusado das duas forças principais que costumam transformar credibilidade em credulidade: a vontade de acreditar e os interesses pessoais, que transformam em verdade o que tudo leva a crer que é mentira. Os fatos desmontaram a credulidade. Agora, a perda de credibilidade contamina outros aspectos do governo e atinge as expectativas de mercado, estimulando fatores que amplificam as turbulências. Por enquanto, a preservação do Banco Central é o que resta ao governo em matéria de confiança econômica contra os riscos de que Mantega tente fazer o que sempre achou correto, quando estava (segundo suas palavras) "do outro lado do balcão".

Os acontecimentos dão início à transição ainda não refletida nos mercados. Há até poucas semanas, o otimismo era alimentado por um cenário: na pior das hipóteses, a continuidade do governo Lula, em edição piorada por conta do fim do mito de partido ético, era amparada por uma agenda econômica, defendida por Palocci contra os "do outro lado do balcão". Agora, qualquer que seja a evolução das chances das candidaturas nos próximos meses, é difícil esperar um segundo mandato de Lula no qual a confiança econômica possa ser ancorada num "novo" Palocci, sensato, tranqüilizador e influente. Para os mercados dominados por eventos de curto prazo, o resultado é um aumento da volatilidade ao sabor dos sinais difíceis de decodificar. Em especial, analistas e estrategistas dos mercados de renda fixa (cujo otimismo estimula a adoção de carteiras mais arriscadas e tem permitido ao Tesouro aumentar o prazo da dívida pública e melhorar sua denominação) devem reagir. A nova transição fica cada vez mais parecida com a de 2002. O empenho do Tesouro, sob Joaquim Levy, em sanear a dívida e a teimosia do Banco Central, sob Henrique Meirelles, em seguir um caminho suave para a queda dos juros eram criticados como ortodoxia pelo atual ministro, quando este "pressionava" o governo de dentro do governo. Os efeitos da transição sobre juros e câmbio devem ser bem menos graves e desorganizadores do que em 2002, ainda que se deva esperar uma elevação dos prêmios de risco.

A perspectiva de prazo mais longo, entretanto, é preocupante. Temos tratado, nos últimos três artigos neste espaço, da fragilidade das concepções de crescimento econômico que identificamos por detrás das promessas dos candidatos. A cadeira de Palocci foi ocupada por um loquaz da insatisfação interna do PT com a gestão do Tesouro e do Banco Central, em nome de um desenvolvimentismo baseado no gasto público - que não deixou marca brilhante no BNDES. Não sobra estoque de credibilidade para que chavões, como "a política econômica é do presidente Lula", bastem para sepultar as suspeitas de mudanças para pior. É significativa a debandada dos quadros competentes, que foram desqualificados publicamente pelo atual ministro por não terem uma "visão de longo prazo" suficiente para violar a responsabilidade fiscal. Murilo Portugal fará falta para reverter a deterioração fiscal em andamento.

O barítono tem um caminho duro para compor, com sua tropa desenvolvimentista, a equipe de gestores da Fazenda, ministério que ancorou a confiança, pois Palocci não permitiu que o aparelhamento substituísse a competência e o respeito pela experiência. A platéia aguarda os primeiros acordes, tolerante com as inevitáveis desafinações que ocorrerão, porque alguns instrumentistas já abandonaram a orquestra. Intolerável será a cacofonia da linguagem confusa. Esta soará como um alerta de uma desorganização econômica semelhante àquela que se temia ser resultado da eleição de Lula.

*Dionisio Dias Carneiro, professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, é diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica (Iepe/CDG)