sexta-feira, março 31, 2006

Corrupção estatal

O GLOBO EDITORIAL

O relatório da CPI dos Correios ficará algum tempo no centro do turbilhão de um debate movido por paixões político-partidárias. O PT e o governo lutarão para suavizar, se possível eliminar, as referências a seus militantes, autoridades e ex-autoridades companheiras, atitude a ser imitada pelos tucanos na tentativa de salvar Eduardo Azeredo, citado no relatório por crime eleitoral, de fato cometido.

O texto ainda será votado. Poderá ser emendado, atenuado. Se for mantido o tom, o PT avisa que editará um relatório paralelo. Há inclusive o risco de a CPI não chegar a qualquer acordo e ficar sem um documento formal — o que será lamentável. Tudo dependerá do jogo de pressões e contrapressões no Congresso.

Mas, haja o que houver, a sociedade já tem à disposição um relatório detalhado, com uma ampla radiografia de um dos mais extensos esquemas de tráfico de dinheiro sujo de que se tem notícia na história da política brasileira. A peculiaridade do resultado das investigações sobre o esquema do mensalão e do propinoduto, montado em parceria pelo mineiro Marcos Valério e pela cúpula do PT, não está apenas na dimensão da obra de engenharia de captação, lavagem e distribuição dos recursos. Está também na origem deles. Como bem foi lembrado, os anões do Orçamento, flagrados dentro do Tesouro nacional na década de 90, eram especialistas em dragar dinheiro público no atacado, na administração direta. No mensalão distribuído por Valério, Delúbio Soares e outros, a fonte de financiamento da corrupção foi outra: passou da administração direta para as estatais.

De forma mais dissimulada ou menos, e por artifícios ainda a serem descobertos por investigações que precisam ser deflagradas a partir do Ministério Público, saiu de empresas públicas a maior parte do dinheiro usado para comprar o apoio ao governo no Congresso. Entre outras finalidades.

Nos dois volumes de quase duas mil páginas apresentados pelo relator Osmar Serraglio, o golpe dado na Visanet pelo aparelho petista existente no Banco do Brasil é explicado em minúcias. Está lá, com notas fiscais e outras provas, como milhões foram antecipados à DNA, uma das agências de Marcos Valério; e a forma pela qual, numa operação articulada com o BMG, um empréstimo foi feito para acobertar a transferência de R$ 10 milhões para o PT.

A própria auditoria do Banco do Brasil detectou falhas gritantes na generosidade com que a diretoria de marketing do BB, sob controle do petista Henrique Pizzolato, doou altas cifras para a DNA, abastecendo o valerioduto. Daí vem o indiciamento, pelo relator Serraglio, do ex-ministro Luiz Gushiken, responsabilizado por Pizzolato — também na lista dos indiciados — pela liberação do dinheiro.

Os Correios saem da CPI como um concorrido balcão de negociatas. As jogadas feitas em contratos na área do correio aéreo de fato transformam Maurício Marinho num "petequeiro", como o chamou o ex-deputado Roberto Jefferson, em nome de quem Marinho disse trabalhar na estatal para conseguir propina destinada ao PTB. E, como se viu naquele vídeo, para o próprio bolso.

A existência de estatais com dinheiro em caixa e a salvo dos obstáculos burocráticos existentes na administração direta permitiu que o aparelhamento da máquina pública empreendido pelo PT e aliados resultasse no valerioduto. Essencial para a montagem desse esquema de ordenha de dinheiro do contribuinte via estatais foi a aproximação entre Marcos Valério e petistas espertos, tarimbados — sabe-se hoje — em conseguir "recursos não contabilizados" em prefeituras controladas pelo partido.

O publicitário mineiro lhes deu acesso à tecnologia de desviar dinheiro público e lavá-lo em agências de publicidade — método também à disposição de empresários privados com interesse em ficar benquistos junto a poderosos em Brasília. É por isso que muito dinheiro saiu de estatais para agências de publicidade de Marcos Valério sob a justificativa formal do pagamento por algum serviço que, descobriu a CPI, não foi prestado. Golpe de mestre.

Entre as recomendações, a CPI propõe maiores controles sobre as estatais e a redução, de 24 mil para quatro mil, do número de cargos à disposição de nomeações políticas na União. Merece apoio. O problema, no entanto, é mais grave e por isso requer um tratamento mais adequado: um outro ciclo de privatizações.

Se o IRB já tivesse saído do controle do Estado, o PTB de Roberto Jefferson não teria transformado a empresa de resseguros numa fonte de arrecadação de dinheiro ilegal. O mesmo vale para muitas das 66 estatais que ainda existem.

O bem construído relatório da CPI dos Correios na verdade indica o caminho das privatizações como antídoto eficaz contra propinodutos de qualquer tendência partidária e colorido ideológico. É a única maneira infalível de se cortar a fonte de suprimento da corrupção.