quinta-feira, março 30, 2006

CORA RONAI Um país em queda livre


Livro sobre Afeganistão corta o coração da cronista,
que percebe o quão perto estamos de Cabul


"Existe apenas um pecado, um só. E esse pecado é roubar. Qualquer outro é simplesmente uma variação do roubo.(....) Quando você mata um homem, está roubando uma vida. (....) Está roubando da esposa o direito de ter um marido, roubando dos filhos o direito de ter um pai. Quando mente, está roubando de alguém o direito de saber a verdade. Quando trapaceia, está roubando o direito à justiça. (....) Não há ato mais infame do que roubar."

Há alguns anos, eu teria recomendado "O caçador de pipas", de Khaled Hosseini, como leitura obrigatória para a canalha política, nem que fosse por estas palavras, dirigidas ao narrador por seu pai. Hoje não me dou mais ao trabalho, e não só porque livros não se usam em Brasília. É que não se usa mais vergonha na cara na política brasileira, não se usam mais valores como dignidade, honra, preocupação com o povo, amor à Pátria. Acho que a própria acepção que dou aqui a esta palavra, "valores", perdeu-se por completo nas esferas do poder.

Há alguns anos, os ladrões nossos funcionários cultivavam, ainda, um mínimo de hipocrisia, e tentavam disfarçar a avidez, a ganância, o pouco caso para com a coisa pública, a falta de dedicação ao país e à sua gente. O objetivo final talvez fosse o mesmo, mas naqueles dias, pelo menos, fazia-se de conta que roubar era crime. A honestidade, bem como a educação e a cultura, ainda tinham seu valor para o público externo; alguns homens públicos, acredito, envergonhavam-se quando descobertos de posse de "fundos não contabilizados", este safado eufemismo para a grana alheia; outros poucos, verdadeiramente honestos, provavelmente envergonhavam-se da malta com que se viam obrigados a conviver.

* * *

Dizem os colegas que sabem mais dessas coisas que sou muito pessimista e que ainda há políticos honestos, além dos dois ou três em quem confio. Mas são uma espécie em extinção dentro de uma classe que perdeu de vez o pouco que tinha de decência e patriotismo com a dança grotesca da deputada Angela Guadagnin, musa do PT -- que, no mínimo, deveria cassada por quebra de decoro parlamentar, se os nossos parlamentares ainda se lembrassem do que quer dizer decoro.

Os poucos políticos honestos e genuinamente interessados no bem do país que têm estômago para conviver com os seus pares nada podem fazer contra o fedor insuportável que emana dos palácios e das repartições públicas, contra a falta de caráter e a cafajestagem explícita que os cercam. Mesmo que queiram, eles nada podem fazer contra a desconstrução das instituições, contra o escárnio com que é tratado o povo, contra a voracidade da máquina que tritura a classe média, arrancando-lhe os olhos da cara em impostos que, quando não seguem sem escalas para paraísos fiscais, sustentam a bandalheira esculachada dos biltres que deveriam cuidar do país, dos estados, dos municípios.

Ai de nós.

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"O caçador de pipas", romance de estréia de Hosseini, que nasceu em Cabul, no Afeganistão, e hoje vive nos Estados Unidos, não chega a ser um grande livro, mas é uma excelente leitura, interssante, ágil, impossível de largar. Sua maior virtude é nos apresentar ao país onde, uma vez, cidades como Cabul, Kandahar ou Mazar-i-Sharif eram lugares cheios de vida, e não as pilhas de escombros que nos acostumamos a ver na televisão e nos jornais. Há um quê de paraíso perdido nessas memórias, mas compreende-se: quando nos lembramos do Rio de Janeiro dos anos 60, a nostalgia traz à tona a paz, a segurança, a cidade maravilhosa; a falta d´água ou as favelas que cresciam somem diante do que se perdeu.

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Amir, o personagem de Hosseini, passa 20 anos longe do seu desgraçado país, primeiro invadido pelos russos, depois vítima dos talibãs. Quando volta, só encontra miséria, ruínas e violência. Os talibãs, a escória da sociedade, percorrem as cidades em bondes, impondo a sua "lei", matando por gosto ou desfastio. A elite intelectual do país e a classe média estão mortas, exiladas ou mendigando nas ruas; os que se refugiaram nos Estados Unidos vendem quinquilharias em mercados de pulgas -- camelôs que, na sua terra, eram médicos, engenheiros, escritores, militares.

Enquanto lia sobre este país torturado, não conseguia deixar de pensar no Brasil, e sobretudo no Rio, que regridem a passos tão largos. Tecidos sociais não se esgarçam de uma hora para outra; vão se desfazendo aos poucos, de violência em violência, de concessão em concessão, de bandalheira em bandalheira. Quando os talibãs do tráfico debocham do exército e os talibãs do MST contam com a complacência dos poderosos, porém, não há mais como disfarçar: estamos cobertos de andrajos morais.

Cabul é aqui.

(O GLOBO, Segundo Caderno, 30.3.2006)