terça-feira, fevereiro 28, 2006

Miriam Leitão Usinas amazônicas

O GLOBO

A Odebrecht já gastou R$ 50 milhões no projeto que ainda nem saiu do papel e que certamente enfrentará muita polêmica: a construção de duas — talvez quatro — hidrelétricas no Rio Madeira. Furnas também investiu um valor dessa ordem. A Odebrecht acha que este é o melhor aproveitamento hídrico disponível no Brasil hoje e que será inevitável o país construir hidrelétricas na Amazônia.

Numa conversa de mais de duas horas com diretores da empreiteira, eles explicaram o projeto à coluna. Muitas dúvidas continuam. A principal: a linha de transmissão terá que ser enorme, de 1.500 quilômetros. Quanto custará? Eles não sabem dizer até porque isso depende de decisões técnicas do governo — serão 50 ou 60 ciclos? Será corrente contínua ou alternada? O fato é que ainda não se sabe. Sem a linha de transmissão, é um elefante branco no meio da floresta.

Odebrecht e Furnas estão desenhando este projeto desde 2001. Mas ele só começará a existir mesmo quando o governo licitar as hidrelétricas. Por enquanto, a licitação depende da licença ambiental prévia, que ainda não saiu.

A ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, fez recentemente uma reunião com vários órgãos do governo determinando que a prioridade na área hidrelétrica são as usinas do rio Madeira. O governo quer licitá-las ainda neste primeiro semestre.

Mesmo antes da licitação, o grupo com maior chance é quem está estudando o assunto há mais tempo e fez o projeto macro, o inventário do rio e o estudo de viabilidade. Portanto, o consórcio Odebrecht-Furnas sai na frente num projeto que pode custar R$ 20 bilhões, sem falar nas linhas de transmissão, que são um negócio à parte.

O que os diretores da empresa disseram é que nunca foi feito um estudo tão detalhado da questão ambiental e que, na preparação do levantamento, várias instituições públicas e privadas foram chamadas para ajudar a pensar os possíveis riscos de construção de hidrelétricas na Amazônia.

— Fomos até à WWF e, quando chegamos, perguntaram o que nós tínhamos ido fazer lá. Dissemos que este é o momento de influenciar no projeto e não depois, quando está pronto — disse o diretor de Relações Institucionais, Roberto Dias.

— Fui em reuniões de que pensava que não sairia vivo, porque só tinha ambientalista, que não gosta nem de ouvir falar de construtor de hidrelétrica — conta o diretor de contrato, José Bonifácio Pinto Junior.

As turbinas usadas serão as bulbo, que reduzem, em muito, o tamanho da área alagada. Para se ter uma idéia, a hidrelétrica de Balbina, a maior violência ambiental já cometida no país em termos de área alagada, produz 250 megawatts num lago de 2,4 mil km². As hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau alagarão, respectivamente, 271 km² e 258 km², produzindo 3,5 mil MW e 3,9 mil MW.

O rio Madeira tem pouca queda, quase nenhuma. A barragem de Itaipu tem 120 metros; Tucuruí, 80 metros; a maior do país, feita pela Odebrecht, é Irapé, com 208 metros. No rio Madeira, a queda é de 16 metros. A tecnologia dessas turbinas foi usada pela Áustria em nove usinas no rio Danúbio e pela França, em 19 usinas no rio Rhône.

A idéia do consórcio Odebrecht-Furnas é fazer inicialmente as duas maiores, Jirau e Santo Antonio; depois, uma outra na Bolívia, a Esperanza, e uma binacional, em Guajará-Mirim.

A coluna ouviu outros especialistas no setor que apontaram um problema: existe neste projeto um conflito de interesses por estar sendo desenvolvido por uma empreiteira e um gerador. Por natureza, a empreiteira quer elevar o preço; por natureza, o gerador quer o menor custo.

— Existe este conflito de interesses, mas, no nosso caso, ele é aparente. Temos experiência em estar nas duas pontas de uma obra: como construtores e como acionistas do negócio em si. Foi o que fizemos por um tempo na ponte Vasco da Gama, em Lisboa, entre outras — disse o diretor-superintendente da Odebrecht, Henrique Valladares.

A Odebrecht tem 80% de seus projetos no exterior.

— No Brasil, continuamos tendo a mesma participação no mercado, mas aqui o mercado de obras é que diminuiu pela queda dos investimentos — comenta Valladares.

Uma das maiores preocupações em projetos na Amazônia é, naturalmente, a ambiental.

Sérgio França Leão é o responsável por uma área chamada “Programa Segurança e Saúde do Trabalho e Meio Ambiente”. Ele acha que não há como o Brasil abrir mão do potencial da Região Amazônica. Defende a tese de que, a partir do projeto, o meio ambiente estará mais protegido. Tese difícil de aceitar. Uma parte do argumento faz sentido:

— Hoje aquela região já está dentro da área da devastação. Nos quatro anos em que estamos estudando o projeto, vimos o avanço do desmatamento. Não é a hidrelétrica que vai provocar o desmatamento. Ela é uma oportunidade de se concentrarem recursos na preservação. Mas tudo isso depende de haver uma política de governo.

Há população ribeirinha, umas 500 famílias, que terão que ser removidas, mas a empresa garante que nem as hidrelétricas, nem a linha de transmissão invadirá área indígena.

Por outro lado, do ponto de vista logístico, quando tiver tudo pronto, haverá uma outra saída para o Pacífico, passando pela Bolívia e indo até os portos de Ilo e Matarani no Peru. Isso evita o Canal do Panamá e encurta o caminho para a China.

A Odebrecht apura os argumentos porque sabe que terá uma batalha pela frente para convencer a opinião pública de que a obra é necessária e foi projetada para reduzir o impacto ambiental. Tem contra si um problema: ano eleitoral é o pior momento para se lançar uma obra que custa, antes da partida, R$ 20 bilhões.

Dois pra lá e dois pra cá

Dois pra lá e dois pra cá

BLOG Ricardo Noblat

O prefeito José Serra foi meditar em Buenos Aires. Voltará amanhã ou no dia seguinte quando deverá se reunir em São Paulo com o senador Tasso Jereissati (CE), presidente do PSDB.

 

Jereissati vai perguntar a Serra o que já sabe - se ele topa ser candidato à sucessão de Lula. Serra topa.

 

E ouvirá dele o que já ouviu: que Serra só topa se o partido se unir em torno dele. E se apelar para que ele seja candidato.

 

Então Jerreissati procurará o governador Geraldo Alckmin para informá-lo sobre a resposta de Serra.

 

E também ouvirá dele o que já ouviu: que Alckmin apoiará Serra ou qualquer outro nome se o partido, por meio de uma consulta mais ampla, assim decidir.

 

Bem, desconheço o desfecho da novela. E desconfio que Jereisssati, também.

 

Alckmin sabe que suas chances de derrotar Lula são mínimas. Que o próprio Lula torce para enfrentá-lo.

 

Mas mesmo que perca a eleição sairá no lucro. Seu nome se tornará conhecido fora de São Paulo. E ele poderá disputar novamente em 2010.

 

Quem banca a teimosia de Alckmin fora ele mesmo e parte do PSDB?

 

Banqueiros e a Federação das Indústrias de São Paulo.

 

É pouco?

 

Não é. É quem manda.

 

Essa turma quer ver Serra pelas costas. Não o considera confiável. A ele se refere como personalista, voluntarioso, concentrador e cabeça dura.

 

A esquerda disputou o segundo turno da eleição presidencial de 2002 com dois candidatos - Lula e Serra.

 

A direita quer disputar a deste ano com Lula e Alckmin. Ficará feliz com a vitória de qualquer um deles.

 

(E não me venham com a história de que direita e esquerda acabaram depois que o Muro de Berlim foi derrubado. Por acaso Heloísa Helena e Antonio Carlos Magalhães pensam do mesmo modo? Ou Roberto Jefferson e Cristovam Buarque?)

Serra, Covas e a “palavra empenhada” em 1998 Por Rui Nogueira

PRIMEIRA LEITURA



Que peso tem, em uma campanha para o Planalto, o fato de José Serra (PSDB) ter firmado o compromisso de não deixar a prefeitura para concorrer a outro cargo público, mas agora poder vir a ser o candidato tucano à Presidência da República? O mesmo peso, muito provavelmente, que teve a quebra de compromisso politicamente semelhante feito pelo governador Mário Covas (PSDB), em 1998. Uma pesquisa no noticiário da época e o comportamento de Marta Suplicy (PT) durante aquela campanha ao governo do Estado talvez ajudem a elevar o debate político atual.

O caso, que vou batizar aqui de caso “Covas-Maluf-Marta”, guarda ainda, como veremos, incríveis semelhanças entre os movimentos das pesquisas da época e os das de agora, envolvendo Luis Inácio Lula da Silva e José Serra (PSDB).

Em 1997, o então governador do Estado de São Paulo, Mário Covas, anunciou publicamente que não disputaria a reeleição. Fez o anúncio e reafirmou inúmeras vezes a decisão. Entre as pré-candidaturas postas, estavam a do ex-prefeito Paulo Maluf (PPB) e a da deputada federal Marta Suplicy (PT), além de uma penca de outros nomes, todos na coluna das possibilidades – Serra, Francisco Rossi (PDT), Orestes Quércia (PMDB), Geraldo Alckmin (PSDB) etc. Tal como hoje, na virada de 1997 para 1998, do término do ano pré-eleitoral para o início do ano eleitoral, os institutos de pesquisa foram a campo para tomar o pulso do eleitor.

Primeira lição sobre as pesquisas a transportar daquela época para esta: candidato declarado e bem conhecido do eleitor sempre aparece muito bem colocado nas pesquisas feitas com muita antecedência. Revisitem o noticiário sobre as pesquisas do fim de 1997: Maluf com 35% a 40% das intenções de voto, e os demais nomes sempre na faixa dos 15%, quando muito 20%. Maluf era candidato declarado, movimentava-se como candidato, falava como candidato e discutia os assuntos de São Paulo como se já estivesse em campanha. Os demais nomes, a começar pelo de Covas, amarrado ao compromisso de se ir para a aposentadoria política, eram tratados como possíveis.

Lula hoje, assim Maluf ontem, está no lugar que deveria estar nas pesquisas. O eleitor, diante de tamanha antecedência eleitoral, sempre tende a citar o nome que junta conhecimento e evidência circunstancial. Maluf era citado como imbatível, e Covas era dado como esperto por, supostamente, ter sacado que a disputa da reeleição seria apenas um ritual de inútil sacrifício. O impressionante, hoje, é que Lula tenha uma vantagem tão pequena em relação a Serra apesar de tamanha exposição eleitoral.

Portanto, senhores, parem de ler o que não está “escrito” nas pesquisas, que Lula ou Serra estão “consolidados”, que Lula é “imbatível”, que Serra “ganha fácil”. O que as pesquisas dizem, hoje, é que o jogo está aberto. Em 1998, quando a campanha começou para valer, Covas e Maluf passaram ao segundo turno, e Covas, com apoio de Marta, entre outros, derrotou Maluf.

Outro imperativo
Pois é, Covas venceu com o apoio de Marta. A mesma Marta Suplicy que hoje faz tanta questão de transformar em imperativo moral o compromisso de Serra, mas, em 1998, não se incomodou com o fato de Covas estar no segundo turno depois de ter jurado que não seria candidato. Pelo contrário: ficou famoso o encontro fraterno de Marta e Covas e a hipoteca de apoio dado pela candidata petista ao imperativo maior, que era derrotar Maluf.

Ontem, como hoje, esses compromissos, ao contrário do que querem fazer crer alguns, não carregam nenhum imperativo moral. São apenas e tão somente imperativos políticos.

Detalhe curioso tirado de reportagens da época: nove em cada dez textos do noticiário diziam, ao listar os prontos fracos e os pontos fortes de cada candidato, que, entre os problemas de Covas, caso ele viesse a se candidatar, estava o “desgaste” por ter “de voltar atrás na palavra empenhada de não se candidatar”.

Segunda lição: deixem, senhores, o julgamento moral para as ações de Estado sob responsabilidade do político eleito. O eleitor nunca teve uma relação moralista com os acordos políticos.

[ruinogueira@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 27 de fevereiro de 2006.

ELIANE CANTANHÊDE Forma e conteúdo

FOLHA
BRASÍLIA- A semana passada foi um verdadeiro carnaval. Lula de chapéu de cangaceiro, caminhando na praia, nadando, almoçando com Bono. Serra num dia de roqueiro no U2, no dia seguinte de folião no camarote da avenida. Alckmin provando na TV um legítimo picolé de chuchu (argh!).
Na vida e na eleição, porém, os símbolos e as formas contam, mas conta principalmente o conteúdo. E a grande marca da semana, talvez de todo este início de ano, foi o anúncio daqueles 2,3% ardidos do crescimento econômico do Brasil em 2005.
O governo, espertinho, divulgou bem na sexta-feira, com os tamborins esquentando, para que o Carnaval engolisse os números e o vexame e o eleitorado simplesmente esquecesse. Mas nós estamos aqui, de plantão, exatamente para essas eventualidades e para não deixar algo assim tão grave cair no esquecimento.
Em 2005, não houve uma só crise na Ásia, na Rússia, fosse onde fosse. A Argentina e a Venezuela cresceram por volta de 9%, mas o Brasil só conseguiu bater um único e miserável país de toda a América Latina: o Haiti. Dá para esquecer?
Enquanto isso, o lucro dos bancos foi recorde, chegando a 80% no caso do Bradesco. 80%! E, segundo a manchete da Folha de ontem, bem no meio da folia, os bancos são os maiores financiadores do caixa do PT e aumentaram suas contribuições ao partido, de 2002 a 2004, em 1.000%. 1.000%! Deve ser coincidência...
Bem, o Carnaval acaba, mas a vida continua, e a campanha eleitoral também. Com os 2,3% de crescimento, com o lucro dos bancos, com as notícias velhas e novas das CPIs, com as pesquisas e a divisão da oposição.
No Carnaval, Serra acabou indo para um "retiro", e Alckmin disse aos repórteres que não falaria de política, porque o momento era de "pierrô e colombina". Mas esses também vão embora e só voltam em fevereiro de 2007. Quem fica, e sem fantasia, são Serra e Alckmin. Aliás, só um dos dois. Chegou a hora da decisão.

CLÓVIS ROSSI O neocoronel

FOLHA
SÃO PAULO - Na sua invencível capacidade de mudar tudo para que tudo fique como está, o jogo político brasileiro engoliu um "sapo barbudo" para cuspi-lo como neocoronel.
É o que sobrou de Luiz Inácio Lula da Silva, que nasceu como inovador. A prova mais recente está nos dados da pesquisa do Datafolha segundo os quais a virada de Lula deve-se quase exclusivamente aos que recebem uma ou mais das bolsas-esmola, criadas no governo anterior e ampliadas no atual.
O coronelismo, para ficar na versão curta, é a fidelização de uma clientela por meio do fornecimento de bens/serviços que deveriam ser obrigatórios, tipo dentadura, cadeira de rodas, internação hospitalar. Na sua versão mais crua, a versão Severino Cavalcanti, é a intervenção para libertar bêbados da cadeia nos grotões da pátria.
No neocoronelismo, saem dentaduras, entra o dinheiro e aumenta a escala. Mas o modelo é essencialmente o mesmo: o da doação a quem não tem nem condições nem oportunidades para obter uma renda minimamente decente. Não que seja criticável. Entre condenar à fome a massa de brasileiros miseráveis e o assistencialismo, viva o assistencialismo.
Desde que não se pense que ele será capaz, mesmo a longo prazo, de levar os beneficiários à inclusão na economia e na sociedade.
Ideologia, Lula não tem. O pouco que havia virou "bravata", segundo ele próprio, e foi atirado à lata de lixo da história. Partido também não tem. Está "desmoralizado", sempre segundo Lula. Virou máquina de eleger caciques, exatamente como os muitos partidos coronelísticos que ajudaram ou ajudam a perpetuar oligarquias regionais.
Diz-se de esquerda, mas é o partido favorito dos banqueiros, com muita, mas muita folga. Paga a seus financiadores com juros que lhes proporcionam lucros recordes.
A cobertura do andar de cima só pode rir à toa com seu "sapo barbudo" domesticado.

Editorial da Folha de S Paulo POBREZA QUE MATA

Armados com facões e paus, jovens atacaram muçulmanos na cidade de Enugu, região sudeste da Nigéria. Um motociclista foi espancado até a morte. Em Kotangora, ao norte, uma multidão de muçulmanos ateou fogo a nove igrejas, saqueou lojas e matou três pessoas.
Esses episódios são apenas os mais recentes de um confronto entre muçulmanos e cristãos que deixou mais de 150 mortos na semana passada. As atrocidades ocorreram na esteira de protestos contra as charges que retrataram o profeta Muhammad, mas refletem a anomia que domina grande parte do continente.
No Sudão, segue em curso um genocídio que já produziu 70 mil mortos e 1,8 milhão de refugiados. Uma milícia de sudaneses arabizados, a Janjaweed, com o apoio do governo, promove uma campanha de limpeza étnica contra negros não-árabes.
Na República Democrática do Congo, cerca de 38 mil morrem todos os meses em decorrência indireta da guerra civil. De 1998 a 2004, estima-se que tenham morrido 4 milhões de pessoas -se o conflito não os matou diretamente, fê-lo ao dilapidar a infra-estrutura de saúde.
As fugas dessas zonas de guerra resultam em campos com milhões de refugiados. Os planos mais razoáveis para o continente partiram do premiê britânico Tony Blair. Ele propôs cancelar toda a dívida externa dos países miseráveis da região e dobrar a ajuda internacional destinada ao continente, atingindo a marca de US$ 50 bilhões por ano na próxima década. Como de costume, a iniciativa esbarrou na negativa dos EUA.
Ajuda mais efetiva, porém, dariam as nações industrializadas se eliminassem os subsídios agrícolas e as barreiras à importação de alimentos. Se tal passo não extinguiria as raízes profundas da tragédia africana, seria ao menos uma chance de o mundo rico demonstrar a existência de um espírito humanitário por trás dos dogmas liberais, arduamente defendidos na hora de abrir mercados para as suas próprias empresas.

Editorial da Folha de S Paulo O FIM DO MUTIRÃO

Um dos piores vícios da política brasileira consiste em desfazer as boas obras de antecessores de partidos rivais para evitar que eles recebam o devido crédito. Com isso, iniciativas que vinham dando certo são revogadas ou relegadas à condição de última prioridade, até que morram de "morte natural".
Há motivos para recear que esse perverso fenômeno esteja se repetindo na decisão do Ministério da Saúde de acabar com os mutirões de cirurgia, projeto implantado quando José Serra (PSDB) dirigia a pasta. O nome de Serra é um dos mais cotados pelos tucanos para disputar a Presidência com Luiz Inácio Lula da Silva.
Desde 1999, sob a égide dos mutirões -nos quais, devido a um esforço concentrado, grande número de operações é feito num período relativamente curto de tempo- foram realizadas em todo o país 3 milhões de cirurgias de catarata, retinopatia diabética, varizes e próstata. O programa é considerado um sucesso por médicos e especialistas.
Filosoficamente, o ministério tem razão. A população deve ser atendida sempre e não apenas em ocasiões especiais e dependendo da patologia. A medicina não deve ser realizada por meio de "feirões da saúde", mas em bases permanentes.
Mesmo assim, mutirões podem ser uma abordagem interessante nas situações em que é grande o estoque de pacientes e em que a concentração dos procedimentos permite ganhos de escala, como é o caso principalmente da cirurgia de catarata.
Seria precipitado condenar as autoridades sanitárias por tentar desenvolver a medicina pública em bases mais estáveis. Ainda assim parece no mínimo imprudente trocar um programa que vai dando certo por uma incógnita. O ministério será cobrado pelos resultados de sua decisão. Quando se considera, porém, que a escolha pode ter sido determinada por razões eleitorais, fica a sensação de que a saúde do cidadão -o que realmente importa- foi deixada em segundo plano.

Editorial da Folha de S Paulo GOVERNO DOS PAPÉIS

O Tesouro pagou R$ 17,9 bilhões em juros da dívida pública em janeiro, um volume mensal recorde desde 1991, segundo o Banco Central. Em 12 meses, foram R$ 162,8 bilhões, ou 8,4% do PIB. É um nível brutal de transferência de renda, e o fato de vir-se mantendo em patamar elevado por mais de uma década agrava seus efeitos deletérios.
O custo dos encargos financeiros no primeiro mês do ano foi quase seis vezes a economia -R$ 3 bilhões, ou 1,8% do PIB- que o setor público fez para tentar controlar o endividamento. Essa desproporção de valores entre a carga de juros e a poupança pública evidencia a perversidade de uma política que descarrega sobre a dívida do governo o ônus de um regime de metas de inflação mal calibrado e executado.
Com a redução gradual na taxa de juros básica, provavelmente as despesas com juros devem se reduzir ao longo deste ano, mas persistirão em patamar muito elevado sob qualquer parâmetro. A política do Banco Central tem onerado excessivamente o Tesouro. Mas agora se apresenta nova chance para que esses dois braços da Fazenda atuem em sintonia.
É o momento de acelerar a desindexação da dívida interna à taxa básica de juros. Esses papéis pós-fixados eram 55,1% de tudo o que o governo devia em títulos em julho de 2005, índice que chegou a 49,7% em janeiro de 2006. Aumentar a velocidade desse processo é fundamental para que se definam no Brasil diferentes taxas de juros: uma, a Selic, para a política monetária, que o Banco Central utiliza em suas operações de curto prazo; e outra para os títulos do governo federal, ligada às necessidades de caixa e à administração do déficit público, onde há oportunidade ainda muito pouco aproveitada para financiamentos de longo prazo.
Sem desmontar essa armadilha que é a dívida indexada -em boa medida, uma distorção ainda não combatida da época de inflação alta-, a política macroeconômica não ganhará horizonte, permanecendo restrita ao curto prazo e presa fácil dos interesses financistas.

Luiz Garcia Magra terça-feira

O GLOBO

Bom assunto para terça-feira de carnaval é Rubem Braga. Logo se dirá por quê — e, dependendo da boa vontade dos amigos, pode colar ou não.

Rubem era um dos que, na década de 50 e nas seguintes, tinham o ofício de cronista de jornal. Ele, Carlos Drummond, Antônio Maria, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, depois José Carlos de Oliveira. Millôr ainda se concentrava nas páginas de humor de “O Cruzeiro”, e me perdoe quem esqueci.

Cronistas falavam sobre o que lhes dava na telha: amor, costumes, farsantes, mulheres — muitas e lindas (as feias que aceitassem as desculpas do Vinicius) — mas o carnaval não era, com exceções que não recordo, a praia da maioria. Especialmente do Braga.

Por que lembrá-lo exatamente hoje? Ora, porque ele inventou a crônica da falta de assunto. Encarava a página em branco (para os mais novos, página é o que hoje chamamos de tela) e partia cavalgando em todas as direções, aparentemente sem rumo nem propósito. Mas sempre chegava ao fim do espaço determinado, com arte e graça.

Pois aqui estou, escrevendo para a Terça-Feira Gorda (assim a chamavam) em busca de uma fuga não muito desafinada à data magna da alegria carioca. E só me ocorre lembrar o Rubem, amigo de meu pai, mestre de, quando necessário, escrever sobre coisa nenhuma — e fazê-lo com a boa mecânica das palavras e a bela arte das emoções de um grande humorista triste.

Para encher lingüiça, uma historinha: Rubem tinha má dicção, no que se parecia com o Castelinho (o Castelo Branco que durante anos foi o maior nome da crônica política nacional). Ambos falavam mais para dentro do que para fora. Um dia, garoto ainda, vi-os num jantar, sentados a metros de distância um do outro: dialogaram horas, e quase ninguém entendia patavina. Certamente disseram coisas de alta relevância — mas, para a platéia hipnotizada, era como se fosse uma conversa de fanhos (suponho que não seja politicamente incorreto, mas sempre ouvi dizer que só fanho entende fanho; com a voz enrolada e para dentro dos dois jornalistas, decerto era igual).

A sala toda perdeu uma conversa arguta e espirituosa, mas todos a acompanharam fascinados. Depois, um e outro alegaram que tinham pescado tudo. Mentira: poderia ter sido ali revelada e confirmada a verdadeira razão da renúncia de Jânio Quadros (de quem Castelinho fora secretário e Rubem embaixador em Marrocos) e ninguém pescou uma traíra que fosse.

Enfim, Rubem — e os outros daquele tempo, qualquer um escolha seu preferido — foi mestre daquilo que naquele tempo tinha o nome de crônica (sem mais nada: crônica social já era outra história). Hoje, tudo é artigo. Muitas vezes, envergonhados pastiches da arte de escrever sem assunto.

Como o presente texto.

Arnaldo Jabor No carnaval, só os sujos são santos

OESP

Todo ano é o mesmo problema: minha coluna sai na terça-feira de carnaval e o único assunto, claro, é o próprio. E sou obrigado a me repetir, pois não tem sentido falar do Lula no carnaval, apesar de ele estar fazendo uma folia nos 365 dias do ano, fantasiado de messias populista, usando chapéu de cangaceiro, de corintiano, de Baco na festa da uva, dançando xaxado, usando agora um blusão “goiabeiro” com um escudo da República, com faixa e tudo. Não dá para falar desse homem, porque é falta de tato, escrever no carnaval para um leitor de ressaca, vestido ainda de bailarina, barbado e sujo, tomando Engov com sal de fruta. Nem dá para falar dos outros ventos que rolam no noticiário, como a gripe aviária, esta vingança das galinhas , nem do espantoso estrago que o Bush fez na humanidade, destruindo em quatro anos o nome da América, unindo o Oriente contra nós e criando exércitos de homens-bomba que agora vão iniciar a guerra civil no Iraque. Este ano eu tentarei não enlouquecer com a insânia do mundo, porque andei muito messiânico. Se bobear, acabo fazendo discursos na rua, como um profeta de camisola, com multidões rindo e me jogando cascas de tangerina. Por isso, só me resta ficar no carnaval mesmo.

Antigamente, os jornais chamavam o carnaval de “tríduo momesco”. Não é genial? “Tríduo momesco”, três dias de folia, delírios de Momo. E o tríduo momesco começava bem antes do carnaval. Começava como uma frente quente no ar, com sons de marchinhas que surgiam no rádio, com os flamboyants sangrando no verão do Rio, com as cigarras cantando (onde estão as cigarras do Rio nos fins de tarde?) naqueles verões que prometiam amores infinitos. O carnaval começava como o prenúncio de uma tempestade feliz, o carnaval para mim não era nem orgiástico nem sexy; era a esperança de realizar alguma façanha, alguma aventura que nunca ousara, que ia mudar a minha vida de tímido e bobo, algo de milagroso, uma paixão realizada, um rosto infinitamente belo que eu beijaria entre confetes dourados e serpentinas sensuais, um extraordinário feito sexual na madrugada ou até mesmo um dramático desencontro, como no famoso conto de João do Rio, O Bebê de Tarlatana.

Para mim, o carnaval sempre teve um ar etéreo, impalpável, sempre foi uma ventania de sons, uma debandada de perfumes, uma alegria febril que só os outros tinham e que eu nunca entendia direito, deslocado, pensando: “Por que estão tão felizes?”

Eu gostava mesmo era de sair na rua do subúrbio para ver os blocos de sujos, como chamavam. Havia perto de casa, no Rocha, um sujeito que saía com uma casaca velha, numa bicicleta cambaia, triste, em silêncio, com um cartaz: “Bloco do Eu sozinho” – tinha algo de metafisico. Tinha o “Amélia”, um mendigo bicha que se vestia de mulher sobre seus trapos e cantava Chiquita Bacana. Vendo os “clóvis” de Santa Cruz, os malucos de saia, bigode e tamancos, eu ficava feliz (oh... infância neurótica...); o resto, as odaliscas jovens, as tirolesas e piratas me intimidavam.

Muitos anos mais tarde, entendi a razão profunda dos blocos de sujos quando vi um genial filme de Jean Rouch, o antropólogo-cineasta francês, um filme chamado Les Maîtres Fous. Nele, os desgraçados da África do Sul, os “underdogs” negros do “apartheid” iam de noite para a floresta fazer um ritual meio vodu de exorcismo dos dominadores brancos. Uma camisola suja vestia um negro enorme, representando a “mulher do governador”, os passos de ganso dos guardas do palácio viravam uma dança caricatural pelos negros esmagados de solidão, um grande ovo de avestruz era espatifado na cabeça de um outro negrão, como o chapéu coroado de amarelo dos generais brancos. Esta representação escrachada da vida social, esta crítica travestida nos oprimidos, esta mímica de si mesmos esculhambados em seu dia-a-dia, isso fica muito além do narcisismo que tomou conta de tudo no carnaval de hoje.

Esta gente não se espreme no gueto programado dos sambódromos.

Nas ruas remotas, está a origem preciosa do carnaval profundo, a festa maluca que o povo dá a si mesmo. Lá estão os desesperados, os famintos de comida e de amor, lá estão os excluídos da festa oficial. Nas ruas, estão os anjos de cara suja, os blocos das escrotas, os blocos dos vagabundos, dos bêbados ornamentais, da crioulada dura. Esses molambos e pirados jogam sobre nós a beleza da lama, detêm o enredo de séculos de exclusão;. na verdade, o samba-enredo mais antigo da humanidade: “Tragédia milenar dos desgraçados”. Ali está a muda revolta não entendida do trabalho desumano, da escravidão dos baixíssimos salários, o prazer de escrachar-se e escrachar a beleza óbvia da elegância e do brilho. Nesta inversão da beleza limpa, há a invasão de uma poesia “grotesca”, que atravessa os séculos, desde Brueghel, Bosch, Rabelais até Goya e Ensor e acaba nas caretas coloridas das máscaras da Casa Turuna. Nas ruas sujas estão as raças brasileiras ensopadas, num casamento grupal doído, dando à luz um bebê mestiço gargalhante, que nos lembra que, sob o brilho das massas de mercado, sobra uma santidade essencial misteriosa.

CELSO MING A mãe das mazelas

OESP

O crescimento econômico médio do Brasil nos últimos 15 anos foi de 2,5% ao ano. Como a instituição do Sistema de Metas de Inflação é de 1999, não dá para despejar a culpa desse avanço medíocre apenas sobre os juros escorchantes.

Sexta-feira, o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, não vacilou. Em nota oficial, deu seu recado: "A única alternativa coerente de promover o crescimento econômico do País é cortar o gasto público."

A gente roda e roda e volta sempre ao mesmo ponto. A mãe de todas as mazelas da economia brasileira é essa incorrigível propensão do governo a gastar demais.

Como não é outra coisa senão déficit acumulado, a dívida pública só chegou aonde chegou e só está estruturada como está porque o governo tenta caminhar além do que agüentam suas pernas. A inflação é fundamentalmente um fenômeno monetário: é dinheiro perdendo valor. É o resultado de um truque manjado e, como tal, falido: emitir moeda para pagar as contas.

Do Plano Real até agora, as conquistas nesse campo foram impressionantes: a inflação foi razoavelmente domada; a Lei de Responsabilidade Fiscal está funcionando; a formação de um superávit primário reforçou a disciplina orçamentária; mal ou bem, o sistema de metas vai ajudando a enquadrar a inflação; o regime de câmbio flutuante facilitou o ajuste; e o sistema globalizado também vai dando uma mãozinha, porque vai operando a economia dos países centrais com inflação baixa e fartura enorme de recursos.

Mas não dá para ignorar os problemas que persistem, apesar dos avanços. No ano passado, as despesas correntes do governo federal aumentaram mais de 10%, muito acima da inflação (de 5,7%) e do avanço do PIB (2,3%). O rombo da Previdência Social é galopante e insustentável. Não há mais como aumentar a carga tributária, que hoje corresponde a 38% de tudo quanto o País produz.

Enfim, há um enorme desequilíbrio fiscal ainda à espera de equacionamento. Nessas condições, o ritmo da produção acaba sendo comprometido pela inflação. É só a economia crescer um tantinho a mais que a inflação volta e exige pisada nos freios, como aconteceu em 2004. Enfim, esta é a marcha amarrada que os economistas chamam de stop and go (pára e avança).

A sina acima descrita dividiu os economistas sobre o que fazer. Sempre houve aqueles que privilegiam o crescimento econômico, ainda que com algum custo inflacionário; e houve aqueles que entendem que, sem controle da inflação, não há crescimento sustentado. Enquanto viveu, o professor Celso Furtado não escondeu seu ponto de vista de que "sem inflação não há desenvolvimento". Hoje, ficou difícil encontrar quem sustente afirmação tão categórica. Mesmo entre os economistas de esquerda - seja lá o que isso signifique - prevalece a posição de que, sem equilíbrio fiscal não há nem crescimento nem política social que se sustente.

Mas, aqui no Brasil, são muitos os que não se conformam e ainda afirmam que uma turbinada no crescimento é bem-vinda e que um pouco mais de inflação não vai fazer muita diferença.

É um tema que rachou o ministério do governo Lula e empurrou o comando do PT em direção a mais criação de empregos e menos ortodoxia.

Curiosa e paradoxalmente, a queda-de-braço está sendo desempatada pelo presidente Lula que não parece ter feito uma opção técnica. Lula continua enfatizando a luta contra inflação não porque ela devesse ter prioridade sobre uma política de crescimento sem base. Mas porque entendeu que a derrubada da inflação lhe dará mais votos do que o esquentamento da produção que garantisse um certo aumento do emprego.ming@estado.com.br

Internacionalização da indústria nacional Rubens Barbosa

OESP


A entrada da China e da Índia no cenário internacional como expressivos produtores, consumidores e exportadores acirrou a competição entre empresas de médio e grande portes e tenderá a expô-las a uma crescente exigência de inserção no mercado global para poder sobreviver.

A internacionalização da empresa brasileira começa a ser uma condição necessária para a obtenção de melhores condições de acesso à tecnologia de capitais, de cultura empresarial e, naturalmente, de mercados.

O conceito de internacionalização deve ser entendido como a prática contínua de qualquer operação internacional por uma empresa, seja pela via da exportação, seja por formas mais sofisticadas de inserção externa, como o estabelecimento de alianças estratégicas com parceiros no exterior, as várias formas de associação entre empresas, a aquisição de empresas em outros países e a instalação de subsidiárias para produção local.

A disposição das empresas de se internacionalizar talvez seja o indicador que melhor sinalize as suas possibilidades de êxito e até mesmo, em alguns casos, de sobrevivência. O acirramento da competição não se dará apenas no contexto externo. A maior abertura dos mercados e a tendência de ampliação de compromissos derivados de acordos de livre-comércio trarão a pressão da concorrência cada vez mais para o terreno do mercado doméstico.

A proliferação de acordos bilaterais e regionais de livre-comércio vem provocando gradual deterioração das margens de preferência para países de fora dessas áreas. A internacionalização via compartilhamento de oportunidades e de riscos com parceiros nesses países constitui uma boa alternativa para contornar barreiras à importação e melhorar o acesso a mercados.

No caso brasileiro, o processo de internacionalização das empresas, ainda que insuficiente, apresenta importantes sinais de avanço. A abertura da economia, a interrupção do processo inflacionário e a profunda reestruturação por que passou a estrutura produtiva na década passada fizeram o trabalho inicial de romper o quadro de isolamento da economia mundial em que vivia grande parte da indústria brasileira.

A contínua expansão das exportações nos últimos anos é, em grande parte, resultado dessas mudanças, ao que veio se somar, mais recentemente, uma melhoria sem precedentes nos termos de troca de nosso comércio, empurrado pelo aumento de preços no mercado internacional de alguns importantes itens de nossa pauta de exportação.

Observando-se a questão sob o ângulo da presença direta de empresas brasileiras em outros países na forma de alianças, de associações, ou de instalação produtiva, percebe-se um claro amadurecimento dessas ações. Aumenta a percepção de que essa nova fase resulta em ganhos líquidos expressivos para a nossa economia e para o emprego, na medida em que fortalece a competitividade das empresas nacionais no mercado externo e também no interno.

Não existem indicadores específicos de quanto as empresas brasileiras estão investindo no exterior - cerca de 10% do produto interno bruto (PIB) -, em razão de as estatísticas oficiais relativas a investimentos diretos englobarem tanto investimentos produtivos como outras formas de operação de brasileiros no exterior.

O processo de internacionalização está no seu início, e os investimentos se concentram nos EUA, na Argentina, na China e na Bolívia.

De acordo com recente estudo sobre a internacionalização da empresa brasileira encomendado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), é cada vez mais significativo o universo de pequenas e médias empresas que aos poucos vêm passando por mudanças culturais e de gestão, com o objetivo de intensificar ou de dar início a um processo de internacionalização.

O estágio de internacionalização de nossas empresas ainda é insuficiente se comparado a padrões observados em países emergentes com presença agressiva no mercado internacional. A participação do comércio exterior brasileiro no comércio mundial, pouco acima de 1% - em decorrência, entre outras razões, do reduzido coeficiente exportação/vendas totais da média de nossas empresas -, é incompatível com a dimensão da economia. Outro indicador, de natureza cultural, é a freqüente falta de "exposição" do empresário brasileiro ao mundo de negócios internacionais e o desconhecimento de seus aspectos regulatórios.

Recente seminário na Fiesp sobre a internacionalização das empresas brasileiras contou com a participação dos professores José Roberto Mendonça de Barros e Lídia Goldenstein, de representantes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da WEG, empresa do setor privado com história de ousadia e de sucesso nessa matéria. A principal conclusão foi a de que é necessária uma atitude proativa para acelerar esse processo, por parte de entidades empresariais, acadêmicas, do setor público e, naturalmente, das próprias empresas.

Na área governamental é necessário um esforço negociador para superar entraves técnicos que impedem a celebração de acordos de bitributação do Brasil com parceiros de vital importância, como é o caso dos EUA e do Reino Unido. A ausência desses acordos representa grande desvantagem para nossas empresas na busca de ocupação de espaços. Caberia ainda examinar formas de dedução fiscal dos investimentos realizados no exterior.

No que tange ao BNDES, sua instrumentalização como agente de internacionalização das empresas poderia dar importante impulso ao processo, assim como a abertura de agências em alguns mercados-chave, de forma a promover oportunidades e oferecer apoio creditício.

Diante do atual quadro de globalização e de competição no mercado mundial, a internacionalização das empresas não é mais uma opção, é uma realidade que se impõe para a sobrevivência das empresas competitivas brasileiras

Xico Graziano Carnaval rural

OESP


Terça-feira de carnaval. Na ressaca da folia, não parece fácil despertar interesse na escrita. Época de certa amnésia coletiva, Momo inibe a pena do idealismo rural. Escrever sobre o quê?

Eureca! No rebolado da mulata sobressai a pena de avestruz. Sim, bem ali, valorizando traseiros e peitos sensuais, se estampa a marca da agricultura. Em pleno carnaval, quem diria, o adorno saído do campo se destaca na passarela do samba.

Vem de longe essa mania de as pessoas se enfeitarem com penas de pássaros. Generais romanos e gregos já adornavam seus elmos com plumas de avestruz. Faraós egípcios as utilizavam simbolizando a justiça e a verdade. Na Europa, a rainha Maria Antonieta adorava complementar suas vestimentas com penas vistosas.

Por aqui, os indígenas foram pioneiros. Coloridas araras, entre tantos psitacídeos, sempre sofreram tal desventura de perder rabos e asas para a vaidade primitiva. Nas armas de guerra ou caça, o tufo de penas assegura a pontaria de flechas e lanças pontiagudas. Na pajelança, cocares vestem a cabeça para agradar ao sobrenatural.

Modernamente, famosos se tornaram nos lares os espanadores de penas. Na faina doméstica, entretanto, produtos sintéticos substituíram tradicionais apetrechos. Na vaidade humana, ao contrário, o atavismo sobressaiu. As penas da bicharada destacam orelhas e estimulam a luxúria. Faz aparecer.

No carnaval tudo se perdoa. O comércio de plumas sempre dependeu do sacrifício animal e da economia clandestina. Até que chegou a tecnologia. Primeiro, no exterior. Há vinte anos o País passou a importar plumas da África do Sul.

Em 1996 se iniciou a criação nacional de avestruzes, conhecida na zootecnia como estrutiocultura. O palavrão advém do nome científico da ave: Strutio camelus. Segundo a Associação dos Criadores de Avestruzes do Brasil (Acab), a atividade conta atualmente com 2,5 mil criadores e um plantel estimado de 335 mil aves.

A avestruz, tanto quanto a ema brasileira, é classificada como uma ratita, quer dizer, ave corredora, que não sabe voar. Uma espécie adulta produz até 1,5 quilo de plumas. Segundo a Cooperativa de Criadores de Ratitas do Estado de São Paulo, cada quilo de plumas tingidas é vendido, nessa época de carnaval, por R$ 450. Como se vê, produzir pena virou um ramo dos agronegócios.

Moral da história: onde quiser, quem procurar amiúde vai encontrar o trabalho do agricultor entremeado nas frestas da sociedade de consumo. A pergunta é recorrente: por que, sendo assim, presente em tudo, até mesmo nas alegorias do carnaval, continua a agricultura tão desvalorizada, esquecida como forma original de riqueza?

Difícil responder. Parte do fenômeno cultural se explica observando o próprio carnaval. Durante dias só aparecem luzes, festa, multidão, beleza, luxúria. O modo de vida rural é oposto a tudo isso. É quieto, distante, singelo. Quando o folião vai dormir, o trabalhador rural está acordando.

Talvez nem o próprio agricultor se aperceba de sua força e importância para a sociedade moderna. As múltiplas conexões da economia o colocam distante do consumidor final e este, por sua vez, fica longe do labor na terra. Tome outro exemplo: a cerveja.

Sem a cevada não existiria a gelada bebida que encharca mentes e embebeda a alma. Na Região Sul, especialmente no Paraná, 140 mil hectares de terra são cultivados anualmente para produzir o grão que, germinado e fermentado, se transforma na apreciada bebida. Nenhum jovem alegre ou barrigudo beberrão se lembra disso quando sorve seu gole. Mas lá dentro, misturado na espuma da cervejinha gelada, está o suor do agricultor.

Na cachaça, que também corre solta nessas farras carnavalescas, mais fácil se percebe a relação entre a bebida e a terra. Todos sabem, embora nem sempre se lembrem, que a matéria-prima da aguardente é a cana-de-açúcar, típica lavoura agrícola. Cada gole da "mardita" esconde um pedacinho do trabalho rural.

A Império da Casa Verde, escola de samba campeã de 2005 em São Paulo, desfila neste ano enaltecendo o boi-capim. Trata-se de justa homenagem aos 100 anos da introdução da raça nelore no País, aquele gado branco com corcunda nas costas. Trazido da Índia, tornou-se a base do rebanho nacional.

Diz o samba-enredo da Império: "Pode aplaudir a saga desse gado brasileiro, hoje um orgulho nacional." Faz assim justiça com a verdadeira epopéia protagonizada por audaciosos pecuaristas nacionais que se aventuraram pela Índia atrás da genética do gado zebuíno, trazendo o bife para a mesa do operário urbano.

O mundo rural, particularmente a pecuária, se felicita com a homenagem que recebe na passarela paulista. Parabéns à turma do nelore brasileiro. Todavia ainda é pouco. Bom mesmo será quando cada mulata enfeitada com pluma de avestruz tiver, ao entrar na avenida, plena consciência sobre a origem de seu adereço.

Somente um bom marketing ruralista será capaz dessa proeza. Aos agricultores, portanto, não adianta lamentar seu esquecimento nesse mundo dominado pelo instantâneo. Cabe a eles descobrir a linguagem da comunicação e aprender a divulgar o valor de seu trabalho na terra. Afinal, ninguém valoriza aquilo que desconhece.

No próximo carnaval, quem sabe, alguma escola do Rio sai vestida com o vermelho do grão de café maduro. E, na Bahia, algum bloco se lembre do produtor de feijão, responsável pelo acarajé, ou do de mandioca, que sem ele ninguém comeria tapioca. Manda um axé na celebração. E viva o carnaval rural!

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Qual é a política econômica do PSDB? LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

FOLHA

Hoje a questão política central é saber quem será o candidato do PSDB à Presidência. Dois candidatos com indiscutíveis qualidades pessoais disputam o apoio do partido, que não sabe como decidir por falta de mecanismos adequados de consulta. Pelo noticiário dos jornais, José Serra é o preferido pela direção porque, nas pesquisas, apresenta uma probabilidade consideravelmente maior de vencer do que Geraldo Alckmin. Os partidários do governador, entretanto, listam uma série de argumentos que indicariam que ele teria melhor desempenho nas eleições presidenciais do que o prefeito paulistano.
Será, entretanto, razoável que se resolva uma questão dessas com base apenas na probabilidade que o candidato tenha de se eleger? Ainda que esse critério seja legítimo, não é o único. Um segundo critério, que também é importante, é o da capacidade administrativa e política, mas nesse campo os dois candidatos já deram provas mais do que suficientes de sua competência.
Existe, porém, um terceiro critério: o das propostas. A política é a arte de alcançar maiorias e governar. Em um regime democrático, as maiorias são obtidas por meio do apoio popular que os partidos políticos recebem para suas propostas de governo. Propostas gerais, mas não vagas. Sabemos que o PSDB é um partido de centro-esquerda, mas isso não basta para a escolha do candidato.
O problema principal é o da recuperação da estabilidade perdida em 1980. Trata-se de saber como alcançar a verdadeira estabilidade macroeconômica, que, além de inflação sob controle, implica juros moderados, câmbio competitivo e estável e razoável pleno emprego. Nesse ponto, o partido -ou, pelo menos, sua cúpula- está dividido. Não estava em 1994, quando logrou debelar a alta inflação. Naquela época, a estratégia de neutralizar a inércia inflacionária unia todo o partido. Desde então, porém, dividiu-se, dado o fato de que o grupo de economistas no poder revelou-se incapaz, senão desinteressado, de resolver o problema da alta taxa de juros e da baixa taxa de câmbio, que inviabiliza a retomada do desenvolvimento.
A divisão do partido ficou clara na recente reunião que sua direção realizou em conjunto com os empresários do Iedi. Dos quatro economistas convidados, dois são críticos da política econômica atual, e dois, favoráveis -economistas ligados à PUC do Rio de Janeiro, que, de uma forma ou de outra, está no poder desde 1994. Em 1994, eles foram os principais executores da política que neutralizou a inércia -uma política cuja teoria foi formulada no início dos anos 80 não apenas por eles mas também por economistas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Desde que o PSDB foi fundado, em 1988, os economistas da PUC do Rio e os de São Paulo que participaram da formulação dessa teoria e das respectivas políticas estavam no mesmo barco. A partir de 1995, porém, os economistas da PUC do Rio são os principais responsáveis e defensores da política que o Ministério da Fazenda e o Banco Central vêm realizando, enquanto os de São Paulo tornaram-se seus críticos. Os economistas da PUC do Rio podem fazer críticas aqui e ali, mas são sempre críticas cosméticas. Segundo eles, a alta taxa de juros está aí para ficar por tempo indefinido, já que suas causas seriam institucionais, só superáveis no longo prazo, e a taxa de câmbio deve continuar sem administração, por conta do mercado.
A colunista do "Valor" Maria Cristina Fernandes percebeu a divisão e comentou (edição de sexta-feira): "Na guerra tucana não apenas falta o árbitro como, quem quer que seja o escolhido, terá que apresentar alternativas não apenas ao atual governo quanto aos oito anos em que o partido esteve no poder. Pela intervenção que fez no evento, Serra não deixou dúvidas de que tomará partido dos insatisfeitos com a atual condução da política econômica. Alckmin entrou mudo e saiu calado do seminário, mas, se o colégio eleitoral tucano estivesse circunscrito à Casa das Garças, centro de estudos onde pontificam os economistas da PUC do Rio, ele provavelmente já estaria ungido candidato". Terão razão esses economistas em pensar assim em relação ao governador? Tenho minhas dúvidas, mas está na hora de sabermos.
Não creio que seja possível saber agora qual é a posição do PSDB em relação à política econômica, mas a posição dos candidatos é mais do que razoável que conheçamos. Já sabemos qual será a posição de Lula: enquanto faz desbragado discurso populista e pratica um não menos evidente populismo cambial, mantém a taxa de juros em nível estratosférico para mostrar que é "confiável". O PSDB, porém, só ganhará as eleições se, além de criticar essa política, for capaz de mostrar que, ao contrário do que afirma a ortodoxia convencional -sempre pronta a afirmar o caminho único e a desclassificar os que dela discordam como "atrasados"-, existe uma alternativa prudente e digna de crédito e que essa alternativa faz parte de um projeto nacional mais amplo de retomada do desenvolvimento.

Lula prepara nova "Carta ao Povo Brasileiro"

FOLHA

LÉO GERCHMANN
DA AGÊNCIA FOLHA, EM PORTO ALEGRE

Mesmo sem ter assumido formalmente sua candidatura à reeleição, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já prepara uma segunda versão da "Carta ao Povo Brasileiro". Uma parte fará uma análise do seu primeiro mandato. A outra, uma projeção sobre um eventual segundo governo.
Quem diz isso é o ex-ministro da Educação Tarso Genro, que é atualmente um dos principais interlocutores do presidente e já foi convidado a assumir novamente um ministério político quando ocorrer a reforma ministerial.
A primeira "Carta ao Povo Brasileiro" foi lançada em junho de 2002, quando o então candidato Lula começava a intensificar sua participação na campanha presidencial. A carta gerou polêmica, especialmente entre os petistas.
O documento -assinado pelo próprio Lula, que pregou a não-ruptura com o modelo de gestão econômica da época e prometeu a manutenção dos contratos firmados- teve o objetivo de acalmar o mercado internacional e conter a alta do dólar durante a campanha eleitoral.
Agora, a segunda versão da carta é resultado de solicitação feita a Lula por PT, PSB e PC do B, partidos que compõem a base aliada do governo no Congresso.
Lula concordou com a idéia e pediu que representantes dos partidos e do próprio governo já comecem a pensar no documento, com representantes da sociedade civil. Um grupo ainda será formado para sua elaboração.
Tarso disse que, além de uma visão para o futuro da administração petista, haverá um balanço do primeiro mandato. Para relacionar com o projeto de governo, serão destacadas, segundo o ex-ministro, a solidez macroeconômica e a credibilidade conquistada no mercado internacional.
""O governo deverá dar solidez ao crescimento econômico e mostrar que os sacrifícios mais duros já foram feitos. Assim, 2006 será o ano da colheita de todas as medidas tomadas", disse Tarso.
O deputado estadual Adão Villaverde (PT-RS), que assumiu o papel de ""líder do governo federal" na Assembléia Legislativa gaúcha no início do governo Lula e mantém forte ligação com Tarso, vai além quanto ao conteúdo: ""A carta terá dois sentidos, pelo que tenho conversado com o próprio Tarso. Em um balanço, mostrará que o primeiro governo criou as condições para tirar o país da ingovernabilidade. Em termos de projeto, pensará o país para além dos próximos quatro anos, com crescimento médio entre 5% e 6%".
A carta, segundo Tarso, poderá começar a ser elaborada antes mesmo de Lula se definir pela candidatura à reeleição. ""Ele ainda vai se decidir sobre isso. Pediu a carta para examiná-la e definir se concorda ou não com seu conteúdo", disse Tarso.
Tarso admitiu que já foi convidado por Lula para ser ministro na nova equipe que se formará a partir da saída dos candidatos a cargos eleitorais. Na segunda quinzena de março, ele vai a Brasília para um encontro com o presidente, quando então deverá ser definida a pasta.
""Não conversamos sobre qual ministério ocuparei. Sei que será ação política."
Tarso deixou o governo no auge do escândalo do "mensalão" para ocupar interinamente a presidência do PT. Derrotado internamente no seu projeto de "refundação" do partido, cedeu lugar a Ricardo Berzoini na chapa para as eleições de outubro passado do Diretório Nacional.

FERNANDO RODRIGUES O atraso do atraso

FOLHA
BRASÍLIA - Lula quer votos da classe média. Pretende dar uns caraminguás para quem tem empregado doméstico. Permitirá algum abatimento no Imposto de Renda ou no valor do INSS. É o atraso do atraso.
A medida é ineficaz para reduzir a informalidade. Atinge a faixa salarial de até um salário mínimo. Essa parcela de empregados trabalha em casas onde possivelmente não se paga Imposto de Renda.
Descontar diretamente o valor pago ao INSS é pior. O pepino estoura mais adiante. O rombo será coberto pelos mesmos que hoje festejam o desconto. No fundo, o objetivo é só mesmo fidelizar o eleitor de classe média para garantir a reeleição de Lula -à custa de perpetuar uma iniqüidade tipicamente brasileira.
Basta folhear o jornal, mesmo durante esta semana de Carnaval. Inúmeros apartamentos novos à venda. Mesmo nos imóveis de dois quartos, modestos, não faltam as curiosas "DCEs" (dependências completas de empregada). O Brasil é o único país do planeta no qual os apartamentos mais simples já vêm projetados na planta com o quarto de empregada.
A classe média detesta retirar o prato da mesa depois de almoçar. Claro, a empregada dá um jeito. Agora, com a ajuda lulista, esse serviço fica ainda mais barato.
A Constituição garante até o direito à vida aos brasileiros, mas esqueceu das domésticas. Elas não têm, por exemplo, Fundo de Garantia.
Para promover a inclusão dos milhões de empregados domésticos, seria necessário equiparar seus benefícios aos de outros assalariados. "Ah, mas aí custa muito caro, e a maioria seria demitida", diria um típico neoliberal petista. Pode até ser.
Mas, se o negócio do PT é igualdade de direitos, é o caso então de retirar dos outros trabalhadores as benesses não outorgadas aos empregados domésticos. "Não é uma má idéia", pensará o petista. Só que essa é uma maldade para o segundo mandato de Lula. Por enquanto, só populismo barato para garantir a reeleição.

VINICIUS TORRES FREIRE Bolsa-Família, o Real de Lula?

SÃO PAULO - O brasileiro é pobre. 50% ganham menos de um salário mínimo, somada a renda do trabalho e de caraminguás sociais. Se o povo melhora um cadinho de vida e vê nisso a mão do governo, vota nele.
A corrupção está muito associada à rejeição do governo e à recusa do voto em Lula para apenas 5% do eleitorado. Não adianta que 77% dos eleitores considerem o governo corrupto; que um terço tenha o presidente da República como muito responsável pelos escândalos.
Tal dissociação entre percepção da bandalheira e tendência de voto tem sido atribuída à redução do ruído midiático a respeito do tema nos últimos três meses. Na campanha, dirão os anti-Lula, a reprise contínua dos videoclipes de cenas lamentáveis encenadas pelos petistas vai reavivar a memória do eleitor.
Mas os adversários de Lula podem vir a incorrer no mesmo erro do PT na eleição de 1994, quando os petistas desprezaram a opinião popular, encantada com a inflação baixa e um crescimento econômico de 10% nos dois anos anteriores à eleição.
Os programas sociais do governo federal afetam direta ou indiretamente 35% do eleitorado, mostra o Datafolha. A rejeição do voto em Lula cai quase à metade entre o "eleitor Bolsa-Família". O presidente retomou a liderança com o voto desse cidadão e o dos mais pobres em geral. O Bolsa-Família é o Real de Lula?
Depois de projetos sociais e corrupção, trabalho e inflação são os temas relevantes. Há tantos eleitores que apontam a ação federal a respeito do emprego como causa de satisfação quantos aqueles insatisfeitos: o desemprego ainda é alto, mas caiu de FHC 2 para Lula. Deve cair mais neste ano.
O pico da popularidade de Lula ocorreu no Natal de 2004, ano de 5% de crescimento. A economia de 2006 será melhor que a de 2005. Haverá mais Bolsa-Família. Os pobres que recebem outros benefícios sociais, mais numerosos que os das "Bolsas", terão mais dinheiro devido ao aumento real do salário mínimo. É um ano pró-Lula.

Editorial da Folha de S Paulo SUBSÍDIO DOMÉSTICO

Registrar os mais de 35 milhões de trabalhadores que não contribuem com a Previdência é sem dúvida um grande desafio à seguridade social no Brasil. Além de não gozar de direitos trabalhistas, essa massa hoje na informalidade dependerá de parentes ou da assistência social pública quando não for mais capaz de exercer uma profissão.
Pode, pois, parecer justa a proposta do governo federal de conceder incentivos fiscais a famílias que registrem seus empregados domésticos. A medida permitiria que patrões deduzissem do Imposto de Renda as contribuições ao INSS que incidem sobre um salário mínimo.
Pretensamente justa, a idéia pode, pelo contrário, representar um reforço na desigualdade social. A concessão de um bônus fiscal às classes mais favorecidas para que contratem serviços domésticos soa mais como uma garantia de privilégios do que esforço distributivo.
A Receita Federal estima que as várias hipóteses em estudo possam gerar renúncia fiscal de R$ 300 milhões a R$ 3 bilhões. Ainda que as perdas do Fisco sejam compensadas com arrecadação extra na Previdência, a medida não deixará de ser, para os que têm mais renda, um subsídio adicional -pois já são beneficiados com a faculdade de descontar despesas de educação e saúde do IR.
Se for implementada, a medida deverá abrir oportunidades para fraudes. Como a proposta é permitir a dedução do IR para apenas um empregado, famílias com mais trabalhadores poderiam recorrer a artifícios como os chamados "laranjas" para se beneficiar da dedução.
É válido cortar imposto em benefício de mais formalização e arrecadação futura da Previdência. Mas, para tanto, o governo pode baixar as alíquotas do INSS para os salários menores de todos os trabalhadores. O problema específico dos empregados domésticos deve ser enfrentado com mais fiscalização.

Editorial da Folha de S Paulo CONTAS EXTERNAS

FOLHA
Em janeiro , o saldo das transações correntes -trocas de bens e serviços do Brasil com o exterior- ficou negativo em US$ 452 milhões. O déficit quebrou uma série de 13 meses consecutivos de saldos positivos e resultou da antecipação do envio de lucros e dividendos de empresas multinacionais instaladas no país para suas matrizes. Tais remessas foram de US$ 1,5 bilhão, quatro vezes o valor de janeiro de 2005.
A expectativa do Banco Central é que as transações correntes voltem a ser superavitárias nos próximos meses. O otimismo se lastreia na crença de que a balança comercial não se distancie muito do bom desempenho de 2005. Apesar da queda do dólar, o saldo comercial continua elevado. Em janeiro, o superávit foi 30% superior ao obtido no ano anterior.
Movimento notável foi do setor privado, que aproveitou a farta liquidez internacional e a redução do risco-país para ampliar suas captações no exterior. Foi tomado US$ 1,2 bilhão em janeiro, o suficiente para rolar sete vezes o montante dos débitos que venceram no mês. A resultante é um aumento da dívida externa das empresas, o que vai contra a tendência prevalecente desde o início de 1999.
Já a dívida pública continua em queda acentuada. Seu estoque veio a US$ 86,4 bilhões em janeiro com o pagamento adiantado ao FMI e ao Clube de Paris. Aprofundando a política, o Tesouro acaba de anunciar o resgate antecipado dos bônus Brady -US$ 6,6 bilhões relativos à renegociação da dívida em 1994. O governo também pôs em marcha a isenção do Imposto de Renda para estrangeiros que adquiram títulos públicos.
Tudo ajuda a consolidar um cenário favorável às contas externas e favorece a queda rápida do risco-país. A conjuntura internacional e as decisões do Tesouro vão diminuindo rapidamente a vulnerabilidade do Brasil a crises cambiais. Estimulam a redução do custo extra que empresas e setor público brasileiros pagam ao tomar empréstimos fora.
Mas vigor e ousadia comparáveis não se vêem na administração da taxa básica de juros pelo Banco Central. Esse é um problema sério de desarticulação entre dois setores do governo que tem imposto ônus desnecessários ao conjunto da sociedade.

Bancos superam as empreiteiras em doações ao PT

Setor, que vive fase de lucros recordes, injetou R$ 5,7 mi no caixa petista em 2004

Doação de bancos a PT cresceu cerca de 1.000% desde 2002 RUBENS VALENTE
MARTA SALOMON

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Os bancos, que sob a política econômica do governo Luiz Inácio Lula da Silva bateram novos recordes de lucro, se tornaram os principais doadores do PT. Entre 2002 e 2004, aumentaram em cerca de 1.000% suas doações aos caixas do PT nacional e do estadual de São Paulo. No período, elas saltaram de R$ 520 mil para R$ 5,7 milhões.
Em 2004, a campanha eleitoral do PT também recebeu a maior quantia dos bancos. As instituições doaram R$ 7,9 milhões ao partido, divididos entre candidatos em todo o país e os dois maiores diretórios. O valor é quase o dobro dos R$ 4,1 milhões doados para a campanha do PSDB.
"Os bancos mantêm relações com o poder, e não com a ideologia", diz o cientista político Bruno Speck, da Unicamp, numa tentativa de explicar o fenômeno.
No diretório estadual do PT em São Paulo, as doações dos bancos se transformaram, em 2004, na maior de todas as receitas do partido, superando o repasse do Fundo Partidário, principal fonte de dinheiro de todos os partidos.
Os bancos doaram ao PT paulista, naquele ano, R$ 4,3 milhões -contra apenas R$ 1,4 milhão de repasses do fundo. As contribuições de parlamentares e filiados somaram somente R$ 550 mil.
As receitas totais do PT paulista foram de R$ 9 milhões, sendo R$ 6,6 milhões referentes a doações de pessoas jurídicas, das quais os bancos representaram 67%.
"[Bancos e empresas] querem manter relações e querem fazer também com que os partidos tenham condições de financiar seu programa e sua disputa eleitoral", disse o tesoureiro do diretório nacional do PT, Paulo Ferreira.
"As relações do PT com os bancos melhoraram. Não sei se o desempenho [das contribuições] tem relação com a melhoria dos balanços dos bancos. Mas, se eles ganham mais, ficam mais generosos", afirmou o tesoureiro do PSDB nacional desde 2003, deputado federal João Almeida (BA) (leia texto nesta página).

Sinais trocados
A importância dos bancos nas finanças do PT hoje é ainda mais impressionante se tomada em comparação com o cenário de antes da posse de Lula na Presidência, em janeiro de 2003. No ano anterior, as instituições financeiras tiveram papel quase insignificante na receita petista.
O total arrecadado de empresas pelos diretórios nacional e paulista foi de R$ 3,58 milhões. Os bancos apareciam com apenas R$ 520 mil (14,5%), por meio de duas instituições, o Itaú e o Banespa. Naquele ano, lideraram absolutas as empreiteiras, com 51% do total doado, principalmente a Construtora OAS, sua associada, a Coesa Engenharia, a Camargo Corrêa e a Carioca Christiani Nielsen, responsável pela construção dos CEUs (Centros Unificados de Ensino), uma das principais obras da então prefeita paulistana Marta Suplicy (PT).
As coletoras de lixo, parceiras do PT desde meados da década de 1990, quando o partido começou a controlar prefeituras de cidades de maior porte por todo o país, apareciam em segundo lugar entre as doadoras, com R$ 1,02 milhão e 28,5% do total.
A maior doadora do setor era a Vega Engenharia Ambiental. Entre janeiro de 2001 e junho de 2004, durante a gestão de Marta Suplicy na prefeitura paulistana, a empresa obteve R$ 430,6 milhões em contratos .
A chegada do PT ao governo federal alterou o perfil dos financiadores do partido. Os bancos assumiram a ponta, com 29% do total para as tesourarias dos dois diretórios -a nacional, controlada pelo ex-tesoureiro Delúbio Soares, e a estadual, pelo tesoureiro Danilo de Camargo.
As coletoras de lixo, embora tenham mais que triplicado suas doações (de R$ 1 milhão para R$ 3,7 milhões), caíram para o terceiro lugar no ranking dos maiores doadores, com 19% do total.

Siderúrgicas
Além dos bancos, as siderúrgicas ganharam destaque no ano de 2004, com cerca de R$ 4,5 milhões em doações - 99% para as mãos de Delúbio, no diretório nacional.
As siderúrgicas nunca haviam colaborado antes com os caixas partidários. O número foi recorde por conta de duas empresas, a Caemi Mineração e Metalurgia e a Navegação Vale do Rio Doce, que juntas doaram R$ 2,5 milhões.
Em contrapartida, o PSDB, longe do Palácio do Planalto e na oposição no Congresso, viu minguar as doações dos bancos. Os recursos migraram dos tucanos para os petistas entre 2002 e 2004. No último ano de governo de Fernando Henrique Cardoso, os bancos despejaram R$ 6,45 milhões nos cofres dos diretórios nacional e estadual do PSDB. Representavam 47% do total arrecadado. Em 2004, o valor baixou para R$ 1,7 milhão.
Curiosamente, as coletoras de lixo, que sequer apareceram nas doações de 2002 ao PSDB, surgiram em 2004 com R$ 950 mil, logo abaixo dos bancos.
A principal doadora do setor foi justamente a Vega Engenharia Ambiental -que mantém contratos com a prefeitura de São Paulo, hoje sob comando do tucano José Serra.

Na China, faça como os chineses PEDRO DORIA

OESP
Na China, faça como os chineses

Navegar Impreciso


pdoria@nominimo.com.br

Zhao Jing tem 30 anos, vive na capital chinesa - Pequim - e tem um bom emprego numa multinacional. Ele é jornalista: trabalha no New York Times. Na verdade, não assina reportagens. Está lá para ajudar como intérprete, faz apuração, pesquisa - é como uma rede de apoio dos repórteres norte-americanos.

De noite, em casa, computador ligado e blog hospedado no MSN da Microsoft, é que Jing vira repórter, escrevendo em mandarim.

Ou virava - não mais. Ficou tão popular que começou a incomodar o governo chinês. Pediram à trupe de Bill Gates que o tirassem do ar. Os engenheiros nem piscaram, só obedeceram.

A relação das grandes empresas de internet com o governo chinês está começando a incomodar um bocado de gente em Washington. É que Yahoo! e Google censuram seu conteúdo em mandarim conforme os pedidos do governo, e a Microsoft tira blogs do ar. Estão fazendo o jogo da ditadura.

Não só elas: a Cisco, que fabrica roteadores - a máquina que, literalmente, faz o roteamento da rede, encaminhando cada pacote de informação para onde deve - também ajuda a filtrar o que pode ser visto ou não de um computador na China.

Este mês, as quatro estiveram perante o Comitê de Relações Internacionais do Congresso dos EUA. Elas apresentam um argumento que, no bojo final, é bastante simples. É verdade que censuram, mas de certa forma não têm escolha que não obedecer as leis de cada país em que atuam - agem, portanto, qual romanos em Roma.

A justificativa das empresas tem um desdobramento. Elas dominam boa parte da tecnologia que põe a internet no ar - o que é parcialmente verdade.

A China vai melhor com internet, mesmo que limitada, do que sem rede alguma. Bem ou mal, está lá uma ferramenta de comunicação que ainda assim é potencialmente revolucionária.

Talvez pareça tudo um bocado razoável - mas não é. Em meados de 2004, agentes policiais cercaram num beco o repórter Shi Tao, 37 anos, o prenderam. Ele foi condenado a 10 anos de prisão por revelar segredos de Estado. Dias antes do julgamento, coincidentemente, seu advogado foi posto em prisão domiciliar.

Shi Tao era editor no Dangai Shang Bao - Jornal do Comércio Contemporâneo - e publicou em seu blog anônimo um alerta que todas as redações do país receberam do governo central. Avisava para que tomassem cuidado com o aniversário de quinze anos do massacre da Praça da Paz Celestial que se aproximava. Afinal, uma entrevista com qualquer dissidente poderia causar perturbações públicas. Cabia não provocar.

No blog, ele se assinava 198964. Não havia como identificá-lo - ou quase. Os executivos da Yahoo!, que hospedavam sua conta, poderiam entregar sua identidade se o quisessem. Pequim pediu, Yahoo! entregou. Talvez mais incômodo seja o fato de que Jerry Yang, um dos fundadores do primeiro site de buscas da internet, é de origem chinesa.

Qual o limite para obedecer as leis de um país? Um senador norte-americano, ironizando o argumento das empresas, disse: é mais ou menos como se Anne Frank ao invés de um diário, escrevesse um blog e o Yahoo! a entregasse ao Terceiro Reich.

Talvez não seja tanto - o governo chinês já passou dos tempos maoístas e não parece estar engajado em genocídio. É só uma ditadura ordinária com muita mão de obra barata para oferecer à fúria do capitalismo internacional. Mão de obra barata, aliás, e uma classe média de milhões de consumidores que não têm o direito de dizer o que lhes passa na cabeça mas compram insaciavelmente.

Fim de fevereiro de 2006, pois, e o governo do País do Centro - é assim que se traduz a palavra que usam para China em mandarim - já anunciou que começará a investigar mais pesadamente os SMSs (mensagens de texto) que os pobres cidadãos trocam entre si pelos celulares. Nada é sagrado.

Google, Yahoo!, Cisco e Microsoft tentam apresentar seu problema como um dilema ético. Saem e deixam a China sem internet ou ficam, cedendo à ditadura, mas ao menos oferecendo alguma participação na rede.

É um não-dilema. Com software livre e computadores que a China fabrica às toneladas, põe-se a internet no ar sem a necessidade de qualquer estrangeiro. E a turma do software livre, enquanto as grandes enchem-se de dinheiro, se preocupa em contrabandear programinhas que, usados de dentro, podem driblar os filtros que a ganância e a ditadura, bem casadas, impõem.

A aposta na metamorfose da China

OESP

Ascensão do gigante asiático à condição de potência abre debate sobre seu papel na comunidade internacional

Marie-Laure Germon
Aléxis Lacroix
LE FIGARO

A ascensão do regime de Pequim à condição de grande ator no cenário internacional provoca uma série de interrogações e, às vezes, inquietações, agora que a sociedade civil chinesa expressa uma aspiração à liberdade. O ex-ministro socialista francês de Relações Exteriores, Hubert Védrine, debate com o ensaísta liberal Guy Sorman que, ao fim de uma viagem de um ano pela China, publicou L'Année du Coq, Chinois et Rebelles (O ano do Galo, Chineses e Rebeldes) (Ed. Fayard, 320 p.)

O sr. assina 'L'Année du Coq', um ensaio no qual revela uma China pouco conhecida no Ocidente. No seu entender, essa é a "verdadeira" China?

Guy Sorman - Outrora, eu viajava à China com Alain Peyrefitte, e nós não víamos a mesma China. Ele me dizia, grosso modo: "Eu me ocupo da China oficial e você da de baixo." Segui esse conselho, passando o ano de 2005 na China de baixo, aquela das províncias e das aldeias. Será essa a verdadeira China? Em todo caso, é a menos conhecida na Europa. O que me chocou nessa "China de baixo", mais que a extrema pobreza, é a miséria filosófica. Na China rural - cerca de 80% do país - , os camponeses não têm nenhum direito: nada de propriedade privada, nada de liberdade de expressão. Eles são oprimidos pelos chefetes do Partido Comunista, muitas vezes violentos e corruptos. Escapar dessa miséria é quase impossível: as antigas redes de solidariedade, a família, os templos foram aniquilados pelas revoluções e se reconstroem com dificuldade. Para as crianças, o futuro é desesperador: as escolas são miseráveis e custam caro aos pais. Resta o êxodo: duzentos milhões de chineses vagam de um canteiro de obras para outro. O desemprego atinge 20% da população, as doenças estão por toda parte - aids, malária, tuberculose... A prostituição em massa também. E não há rede de saúde pública: a saúde é sempre paga.

Em 'L'Année du Coq', o sr. escreve: "A ideologia dominante do enriquecimento pessoal não favorece a compaixão." Esse é um dos reversos da modernização da China?

Sorman - Freqüentemente se atribui à cultura clássica a relativa falta de compaixão que se pode observar na China contemporânea. Parece-me que é antes a ideologia do regime - o enriquecimento pessoal a qualquer preço - que destruiu a força compassiva da China pré-comunista.

Hubert Védrine - 'LAnnée du Coq' de Guy Sorman é uma investigação sem complacência, às vezes cruel, à semelhança dos livros de Zola, Dickens ou Steinbeck. Não existem apenas as cidades novas como Pudong; há uma outra China também, e ela é até majoritária, eu não vejo como se poderia contestar. Coexistem diversas Chinas. Mas em que sentido isso caminha? Não se pode dizer. É difícil afirmar que, para os chineses de hoje, a situação se agravou. Mesmo sem recuar muito no tempo, não esqueçamos as provações terríveis que os chineses enfrentaram no século 20 - a guerra, a ocupação japonesa e suas atrocidades, a guerra civil, o maoísmo, o fiasco catastrófico do Grande Salto Para Frente, as exigências da Revolução Cultural e seus milhões de mortos. E eles se lembram disso.

Sorman - Sim, Hubert Védrine. A situação da China é globalmente melhor que nos períodos trágicos que você enumera; é por isso que as reivindicações populares estão aumentando. Várias rebeliões atuais se explicam pela impaciência: as pessoas desejam entrar mais depressa na modernidade, e se decepcionam com o avanço muito lento; o povo também está revoltado com o enriquecimento dos poderosos.

Védrine - Apesar de tudo, gostaria de expressar um otimismo moderado. Continuo achando que, apesar das forças de obstrução autoritária que você observou na China, a dinâmica do movimento acabará se impondo e modificará a situação que você descreveu.

Sorman - Talvez, mas durante o ano do galo, o governo chinês reforçou o aparelho de propaganda, censurou meios de comunicação, proibiu ONGs e prendeu muitos jornalistas e religiosos. Muitos manifestantes nas aldeias foram mortos pela polícia; começamos a saber dessas coisas pela internet. O que caracteriza o regime atual é a contradição permanente entre um discurso moral no topo, pseudoconfucionista, que ataca os ocidentais, e a brutalidade que o povo comum sofre no cotidiano.

Justamente. Um dos cenários possíveis para o futuro da China não será uma aliança entre um "hipercapitalismo" e um Estado autoritário?

Sorman - Hubert Védrine parece acreditar num triunfo final da dinâmica liberal... De minha parte, não aposto nessa transição automática da prosperidade para a democracia: o capitalismo de Estado atual - antiliberal, porque sem propriedade privada - foi inventado para fortalecer o partido, e não para dissolvê-lo. É verdade também - falo muito disso em L'Année du Coq -, que uma cultura popular se desenvolve, independentemente do partido; pela música e a televisão, os jovens chineses se aproximam dos costumes ocidentais. Acredito que a mudança passará por onde não se espera. Enquanto a sociedade se abre, explora a internet e experimenta aí contornar a censura, o partido resiste e, com a cumplicidade de empresas como o Google (site de busca da internet que cedeu à censura do governo chinês), exclui as palavras "Taiwan" e "democracia" dos mecanismos de busca.

Essa censura será a prova de que o regime chinês sabe se esquivar dos novos meios de comunicação?

Sorman - O Partido Comunista Chinês teme imensamente a liberdade de informação e a liberdade de consciência: ele não tolera nenhuma crítica, incluindo a internet. Nas universidades não há debate. Aos devotos que esquecem a natureza deste regime, recordo que a polícia prende sem julgamento pessoas consideradas "desviantes", em particular budistas, taoístas e pastores protestantes. Portanto, não é a China que me inquieta, mas o partido: suas intenções são impenetráveis e imprevisíveis. Nós ficamos restritos a vislumbrar indícios minúsculos como no tempo de Mao Tsé-tung, com a esperança de que os reformistas do partido se apoderarão dele...

Neste momento, na Europa, crescem as preocupações com sucessos alcançados pela China na conquista de novos mercados. O tema do "perigo amarelo" estará de volta ante uma China que se torna um ator importante na globalização?

Védrine - É preciso lembrar em que contexto ocorre essa emergência da China. Depois da queda do Muro de Berlim e do desmoronamento da União Soviética, o Ocidente acreditou no seu triunfo e no "fim da História". Os povos do planeta iam se alinhar sobre nossa "democracia de mercado". Ao mesmo tempo, os europeus esperavam viver enfim num mundo "pós-trágico" - um mundo onde a Carta da ONU seria respeitada e onde os Estados recuariam em favor da justiça e da sociedade civil internacionais. Durante uma década de otimismo, os mesmos acreditaram iminentes a concretização da paz no Oriente Médio, o advento de um Tribunal Penal Internacional ou de uma Europa poderosa. Essas promessas grandiosas não se cumpriram e as ilusões dos anos 90 não saíram incólumes dos anos 2000-2005: mesmo a ONU, em Durban, não conseguiu chegar a um acordo numa questão tão simples quanto a definição de racismo. A comunidade internacional continua sendo um belo objetivo. Na falta de uma ameaça unificadora, o laço transatlântico afrouxou: os Estados Unidos contemporâneos não são mais compreendidos por europeus obstinados contra o recurso à força. E eis que o terrorismo se incrusta, que surgem a China, a Índia, o restante da Ásia, que a Rússia joga com seu petróleo e seu gás. Tudo isso não tem nada a ver com a "globalização feliz". A questão chinesa só adquire mais amplitude. Por enquanto, não retornamos ao "perigo amarelo".

Sorman - Nossa cultura econômica deixa tanto a desejar que os franceses não percebem todos os avanços que a China lhes oferece. Nós interiorizamos até que ponto as exportações chinesas na França dopam nossa economia. Mas não estamos suficientemente conscientes de que, graças às fábricas chinesas, podemos também comprar pela metade do preço os tênis para nossos filhos. Com o risco de me repetir, meu temor fundamental incide sobre a China como potência político-militar, não como potência econômica.

Fala-se muito no surgimento de um mundo multipolar. No seu entender, a China será um de seus motores?

Védrine - O mundo multipolar surgiu, de fato, aos trancos, mas às vezes parece que à nossa revelia! Várias relações bipolares se estabelecem e escapam ao controle de uma Europa que se tornou contornável: entre China e a América Latina, entre África e China, América Latina e África, Rússia e China, Índia e Estados Unidos, Rússia e Irã, Irã e China, etc. Isso não é completamente favorável a uma "comunidade internacional", embora não seja novidade. E o que me inquieta, diferentemente de Guy Sorman, é não ter certeza sobre a eficácia dos mecanismos, exceto, em parte, no interior da Organização Mundial do Comércio (OMC), que permitiriam a uma verdadeira comunidade internacional multilateral integrar essas novas potências emergentes, sem tensões graves. Várias civilizações no mundo continuam coexistindo com suas mentalidades diferentes. Alguns dirigentes chineses evocam, para atenuar a inquietação internacional, uma "emergência pacífica da China". Se o mundo não está necessariamente preparado para fazer frente a esse turbilhão chinês, não é menos verdade que, contrariamente ao Ocidente, que sempre assumiu como um dever "evangelizar todas as nações", a China jamais manifestou uma propensão particular ao proselitismo. Esse ponto é encorajador.

Sorman - O imperialismo cultural do Ocidente, outrora em nome de Cristo, hoje em nome da democracia, é também o sinal de um interesse pelo outro. É verdade que, exceto na revolução maoísta, a China não propõe um modelo universal para os não chineses; mas não será porque o resto do mundo é ignorado, desprezado até? Apesar dessa não-ingerência - simpática - da China em nossos assuntos, por que a China deveria nos inquietar mesmo assim, mais que a Índia, por exemplo? Porque a China, não sendo uma democracia, é, por definição, imprevisível.

Como os ocidentais devem se comportar com essa China que os inquieta?

Sorman - Abstendo-se de um excesso de reverência para com o Partido Comunista; o partido não é a China, ele é apenas o seu ditador momentâneo. Como as 26 dinastias imperiais que o precederam, esse regime desaparecerá. É em nome dessa distinção entre o povo e os déspotas do momento que, em L'Année du Coq, eu caracterizo a vontade francesa de vender armas a Pequim. Tenhamos um pouco de memória e um mínimo de moral! O massacre da Praça da Paz Celestial - que esteve na origem do embargo sobre as armas não é, para o povo chinês, uma página virada: 17 anos depois, ainda não se conhecem os nomes das vítimas, os pais não puderam realizar os funerais. Faço uma sugestão: antes de levantar o embargo e enviar nossos atletas aos Jogos Olímpicos de Pequim, a França se honraria ajudando a sra. Ding Zelin, presidente da associação das mães das vítimas da Praça da Paz Celestial, a preparar a lista. O PC a proíbe: de que lado está a França nessa negação da memória?

Védrine - Se tivéssemos de lidar com uma China determinada a converter o mundo aos seus próprios valores universais, como são as sociedades ocidentais ou islâmicas, haveria do que se inquietar seriamente no futuro. Mas a ambição chinesa tem o ar mais clássico, a do regime, como a dos chineses, para retomar a distinção de Sorman. Mas em seu livro, Guy Sorman, você pede uma política ocidental mais dura e mais condicional em relação a Pequim. Você sugere inclusive sanções e medidas de pressão no momento mesmo em que o mercado chinês fascina e atrai mais do que nunca! Seria legítimo? Seria eficaz? Em sua fase atual de arrogância , os ocidentais se esquecem com muita freqüência que eles representam apenas um sétimo da população mundial. E será realista? Não se vê um acordo entre os Estados Unidos e a União Européia sobre essa base. É preciso ser prudente, é claro, zelar por nossos interesses estratégicos e econômicos, ter com a China uma linguagem clara. Mas pode-se também apostar na metamorfose da China, numa dinâmica interna que já está mudando a sociedade e suas aspirações e deverá acabar fazendo evoluir o próprio regime, e os encorajar a mudar.

Tradução de Celso M. Paciornik

Virada de Lula coincide com a explosão no gasto publicitário

ESTADÃO

Virada de Lula coincide com a explosão no gasto publicitário

Presidente investe em divulgação 85% mais que FHC e faz mais propaganda que Bradesco, Pão de Açúcar e Ford

Paulo Moreira Leite

Números oficiais mostram que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a liderança das pesquisas eleitorais depois que o governo fez imensos gastos de publicidade. Entre 1º de janeiro e 23 de fevereiro deste ano, o governo empenhou gastos no valor de R$ 52 milhões em propaganda. Em 2005, no mesmo período, gastou R$ 212 mil - ou apenas 0,5% do dinheiro empenhado no início de 2006, quando o presidente disputa a reeleição. Em dezembro de 2005, os pagamentos de publicidade chegaram a R$ 55 milhões, o gasto mais alto do ano passado. Em sua contabilidade, o governo registrou ainda que recebeu serviços de publicidade - reconhecidos mas não pagos - no valor de mais R$ 151,4 milhões.

A virada na campanha ocorreu após esta chuva de dinheiro. Em dezembro, Lula estava no fundo do poço e, segundo o Ibope, poderia ser batido por José Serra (PSDB) no primeiro turno. Em fevereiro de 2006, o Datafolha e o Instituto Sensus dizem que Lula se tornou favorito à reeleição.

Ninguém acredita que a publicidade tenha mudado o placar da eleição. Mas ninguém acha que seus efeitos sejam nulos. "A publicidade oficial tem um efeito real sobre os eleitores, mas é difícil medir sua magnitude", admite Márcia Cavallari, diretora-executiva do Ibope. Obtidos com exclusividade pelo Estado junto ao Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), estes dados são reveladores, mas parciais, pois não incluem as empresas estatais.

A comparação entre os últimos três anos do governo Fernando Henrique Cardoso com os primeiros três anos de Lula é ilustrativa. Em valores corrigidos pelo IPCA, a soma de gastos de Lula chega a R$ 903,7 milhões, contra R$ 488 milhões de FHC - um aumento de 85% no governo do PT. Em 2005, o governo Lula fez pagamentos da ordem de R$ 348,2 milhões. Foi um ano de véspera de reeleição, quando os estrategistas políticos aconselham um trabalho de sedução prévia do eleitorado, sem as restrições da legislação que imperam no ano seguinte.

FHC fez a mesma coisa quando tentava a reeleição, mas foi mais comedido. Em 1997, gastou 40% a menos, ou R$ 245,4 milhões em dinheiro de hoje.

"O governo Lula é escandalosamente perdulário", afirma o deputado Alberto Goldman (PSDB-SP). Embora não seja possível fazer cálculos científicos sobre o impacto desse tipo de publicidade, é razoável estabelecer conexões. A popularidade de Lula despencou no segundo semestre de 2005, quando a crise do mensalão estava no auge.

O valerioduto apareceu na própria Secretaria de Comunicação da Presidência, a Secom, onde o publicitário Duda Mendonça circulava com ares de sumidade antes de seu envolvimento no escândalo. O ministro Luiz Gushiken deixou o cargo para evitar maiores desgastes. No meio de tantas denúncias e acusações, os anúncios sumiram e os gastos caíram. Nos últimos dois meses do ano, a propaganda voltou a subir, o que faz sentido do ponto de vista eleitoral.

No fundo do poço das pesquisas, o presidente Lula fazia circular a versão de que poderia desistir de disputar a reeleição, enquanto a máquina de propaganda seguia em atividade. Os gastos com publicidade oficial em dezembro foram 40% superiores aos de outubro, que por sua vez haviam sido 70% superiores aos de setembro.

O Ibope sempre mostrou que, ao comparar Lula com Fernando Henrique Cardoso, o eleitorado marcava uma preferência por Lula. Essa vantagem, medida na comparação entre o pior e o melhor, chegou a ser de 30 pontos, no início do governo, depois caiu para 25. No fim do ano passado, encolhera para 9 pontos - 39 a 30 para Lula. Na economia, havia um ambiente de pessimismo e desconfiança. A notícia de que a economia tivera um crescimento negativo, aliada às denúncias permanentes de malfeitorias em Ribeirão Preto, colocava em risco a própria sobrevivência do ministro da Fazenda, Antonio Palocci.

Em meio a tantas notícias ruins, em dezembro Lula deu os primeiros sinais de recuperação, mesmo em desvantagem para Serra. A avaliação geral permaneceu estável em vez de cair. Quase um terço dos entrevistados declarou que estava convencido de que teria mais dinheiro no bolso nos seis meses seguintes. O número de quem achava que a oferta de emprego iria melhorar também aumentou. Em setembro, 57% das pessoas entrevistadas disseram que 2005 havia sido um ano bom. Em dezembro, esse patamar já subira para 61%.

CONSUMIDOR

Gastando quase o dobro de publicidade do que seu antecessor, em 2005 o governo passou a exibir porte de grande anunciante. Numa comparação a partir de dados sobre empresas privadas do Ibope/Monitor, descobre-se que o Planalto gastou um pouco menos do que a General Motors, que investiu R$ 387,5 milhões em 2005, mas superou o Grupo Pão de Açúcar, a maior rede de supermercados do País, que ficou em R$ 323 milhões. Já a Ford nem deu para a briga: gastou R$ 302,9 milhões. Os dois maiores bancos privados, Bradesco e Itaú, gastaram R$ 216,0 milhões e R$ 182,2 milhões, respectivamente. A Renault e o grupo Carrefour anunciaram a metade do que gastou o governo do PT.

Os estudiosos dizem que propaganda não é tudo em política e estão certos. Além daquilo que vêem na TV e nas páginas de jornal e revista, os eleitores raciocinam com a própria experiência, conversam com amigos, ouvem a opinião de vizinhos e discutem na mesa do bar. Há quem acredite que esse movimento de boca-a-boca, autônomo e descontraído, tem o poder decisivo numa eleição - pois é ali que o eleitor ouve pessoas em quem confia e conversa sem receio de ser prejudicado. Mas ninguém nega o valor da propaganda, mesmo reconhecendo seus limites.

Importando técnicas criadas pelo comércio para expandir vendas de mercadorias, o mundo político assume iniciativas de resultado desconhecido quando se tenta tratar o eleitor como um consumidor. É certo que a publicidade tem um efeito instantâneo benéfico aos candidatos em geral. As pesquisas demonstram que o eleitor sabe separar o que é publicidade do que é informação genuína - e absorve, sem ligar para a origem, tudo aquilo que considera útil para sua escolha na hora de votar.

O que se questiona é a durabilidade e consistência dos efeitos publicitários numa campanha política, onde cada candidato é submetido ao corredor polonês dos adversários.

Ainda faz sentido usar os termos direita e esquerda para designar posições políticas?

Clap, clap, clap para Bolívar!

Augusto de Franco (26/02/06 14:37)

Permitida a reprodução citando a fonte
http://www.e-agora.org.br

Os artigos de ontem, da seção Tendências/Debates da Folha de S. Paulo, estão muito bons. Diante da pergunta: "Ainda faz sentido usar os termos direita e esquerda para designar posições políticas?", proposta pelo jornal, Maria Hermínia diz SIM, no texto "Mais do que meros rótulos", enquanto que Bolivar Lamounier responde NÃO, no artigo "Camisa-de-força fadada à obsolescência". As duas respostas são muito boas. Concordo mais com a do Bolívar. Pois como defendi aqui algumas vezes, creio que tais noções estão ultrapassadas. O mais interessante na resposta do Bolivar, entretanto, são as suas considerações sobre o que não sabemos e julgávamos que sabíamos e sobre as novas parcerias e sinergias entre Estado, mercado e sociedade civil. Até que enfim alguém reconhecido no ambiente acadêmico tem a coragem de abandonar as perspectivas estadocêntrica e mercadocêntrica, sem as quais - parece óbvio - os conceitos de esquerda e direita se desconstituem.


Ainda faz sentido usar os termos direita e esquerda para designar posições políticas?

Folha de São Paulo (25/02/06)

SIM

Mais do que meros rótulos

MARIA HERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA

Os termos esquerda e direita servem tanto para a auto-identificação de pessoas, grupos e partidos quanto para descrever visões sobre a política e dar clareza aparente à disputa pela influência e comando sobre as decisões públicas. No primeiro caso, as palavras esquerda e direita continuarão válidas enquanto houver quem se proclame de esquerda ou de direita -qualquer que seja a opinião que se possa fazer sobre a propriedade da auto-rotulação. No segundo caso, a resposta é mais complexa, porque supõe atribuir conteúdos mais precisos a ambas as palavras.

Hoje, como no passado, cada uma delas abarca visões bastante distintas sobre a sociedade, a política e as agendas desejáveis de governo. Ainda assim, melhor seria falar em esquerdas e direitas, tal a variação de pontos de vista no interior de cada campo.

Existe uma esquerda autoritária, que vibra com as arengas de Fidel Castro, e uma esquerda democrática, que se inspira no espanhol Felipe González, na irlandesa Mary Robinson ou na norueguesa Gro Brundtland; uma direita autoritária e antiliberal, que admira o francês Le Pen e os skinheads, e uma direita ultraliberal, que venera a inglesa Margaret Thatcher.

Nos últimos tempos, as correntes autoritárias -em uma ponta e na outra do espectro político- perderam espaço e importância para aquelas que aceitam as regras do jogo democrático e o capitalismo.

O socialismo autoritário, talhado pelo figurino soviético, foi sepultado sob os escombros do Muro de Berlim -depois de ter sido desnudado pela primeira vez no Relatório Kruchev, há exatos 50 anos. Restou como anacronismo no Caribe e na Coréia do Norte.

A direita xenófoba, é bem verdade, renasceu na Europa unida e tomada por imigrantes do Terceiro Mundo (que se dispõem a fazer o que os nativos enjeitam). Mas está longe de ser uma alternativa de poder.

Já a distância entre esquerda democrática e direita democrática diminuiu. Isso não é novo. Na democracia, a disputa pelo voto tende a produzir convergências em torno de posições com mais chances de êxito eleitoral. A competição democrática tende a empurrar os partidos para o centro. O novo nos últimos 20 anos é que, nessa marcha, a esquerda democrática andou mais -para frente ou para trás, cada qual que o julgue-, aproximando sua agenda daquela defendida pela direita liberal.

Quer dizer que as diferenças entre esquerda e direita deixaram de existir? Não creio.

Como o pensador italiano Norberto Bobbio (1909-2004), acredito que o tema da igualdade é o grande divisor de águas entre elas. Diz respeito à distribuição de recursos e oportunidades entre os membros de uma sociedade. A direita democrática, que defende a igualdade civil e política, considera naturais e aceitáveis as desigualdades produzidas pela economia de mercado, aposta na capacidade dos indivíduos de prover a própria subsistência e quer reduzir ao mínimo a atuação dos governos sobre o mercado, além de rever o sistema de proteção social erigido ao longo do século 20.

A esquerda democrática concebe a igualdade de maneira mais ampla. Ela deve comportar não só garantias individuais e direitos políticos mas também direito a bens e serviços que assegurem aos cidadãos, no curso da sua vida, condições decentes de existência e acesso a oportunidades e recursos sem discriminações. Defende a economia de mercado, mas sabe de suas imperfeições e das conseqüências socialmente perversas que elas produzem. Aceita a competição, mas sabe que é necessário equalizar as condições em que ocorre.

Na realidade, o que distingue a esquerda democrática da direita democrática é o objetivo de reduzir as desigualdades ao mínimo compatível com a preservação das liberdades individuais e da democracia. Propriedade estatal ou regulação pública de atividades privadas; provisão de bens e serviços pelos governos, por empresas privadas ou por organizações não governamentais -são apenas meios, e não fins. Não é por aí, portanto, que se distingue a esquerda democrática.

Em suma, enquanto a igualdade entre as pessoas for um valor moral e político amplamente compartilhado, e enquanto sociedades e mercados continuarem produzindo desigualdades de vários tipos, os termos esquerda e direita continuarão a fazer sentido.

Maria Hermínia Tavares de Almeida, doutora em ciência política pela USP, é professora titular do Departamento de Ciência Política e vice-diretora do Instituto de Relações Internacionais da USP.


NÃO

Camisa-de-força fadada à obsolescência

BOLÍVAR LAMOUNIER

No plano interno das democracias, o mundo atual se caracteriza por uma sensível redução das distâncias ideológicas. Como conseqüência, a competição partidária se tornou multipolar e a expressão direita X esquerda deixou de ser o eixo dominante em torno do qual se estruturava antigamente o imaginário político.

A mencionada dicotomia ainda serve, é claro, para designar os papéis que certos intelectuais e agrupamentos políticos ativos se auto-atribuem, principalmente no que se refere à questão das desigualdades de renda e riqueza.

Em termos bem gerais, os (poucos) que se identificam como "direita" priorizam a estabilidade em relação ao crescimento e preferem melhorar a distribuição da renda por meios indiretos (notadamente a educação). No lado contrário, o termo "esquerda" designa prioridade ao crescimento sobre a inflação, preferência por meios diretos e auto-atribuição de um maior empenho ou maior competência na implementação de programas redistributivos. É óbvio que as ações do Estado contemporâneo não se encaixam satisfatoriamente nesses rótulos, sendo hoje a inversão de papéis entre governos de direita e de esquerda ocorrência freqüente.

Até três décadas atrás, o veio principal da esquerda era constituído pelos PCs (partidos comunistas). Estes perderam a sua referência principal quando a URSS e seus satélites desmoronaram e a China deu sua forte guinada para a direita. Cuba, obviamente, não dá para o gasto. O que a queda do Muro de Berlim simbolizou não foi o começo, e sim o ponto de não retorno em uma grande reordenação do poder mundial, por sua vez apoiada em importantes transformações econômicas, tecnológicas e sociopolíticas, entre outras.

Uma evocação, mesmo esquemática, das raízes históricas da expressão direita X esquerda será suficiente para ressaltar o envelhecimento desses conceitos. De meados do século 19 até a Segunda Guerra Mundial, período de sua máxima vigência, os termos esquerda e direita eram ícones contrapostos em uma representação abrangente do universo social. Aludiam a uma divisão infranqueável da sociedade em dois campos: um, devotado à destruição revolucionária da ordem existente, ao aprimoramento da sociabilidade humana e à construção de uma sociedade igualitária; o outro, resistindo compactamente a tal projeto.

A missão histórica de instaurar a sociedade sem classes caberia à classe operária e "seu" partido, que assumiriam o controle do Estado e o converteriam na "ditadura do proletariado".

Nas "democracias burguesas", o Estado poderia eventualmente ser conquistado pela via eleitoral e posto a serviço de reformas sociais progressivas, mas abrangentes.

Essa parte do sonho esquerdista foi por água abaixo em três etapas: primeiro, a petrificação totalitária da URSS; segundo, a generalizada autotransformação de dirigentes partidários de esquerda em uma nova elite burocrática, fenômeno detectado já nos anos 20 por Robert Michels; terceiro, a chamada crise fiscal nos países ocidentais avançados, evidenciando de uma vez por todas que o Estado-demiurgo tinha as mãos e os pés atados.

Por último, mas não menos importante, o que se poderia denominar o conhecimento do conhecimento. Nos primórdios, a esquerda julgava-se portadora de um conhecimento superior, suficiente para decifrar até o devir histórico. Acreditava tanto quanto os piores capitalistas na possibilidade de um progresso material acelerado e por tempo indefinido, sem restrições ambientais.

Hoje, sabemos que sabemos muito pouco. Sabemos, para começo de conversa, que a promoção do crescimento não é uma questão trivial. Sabemos que reduzir expressivamente as desigualdades sociais não é fácil, mesmo com a economia crescendo a taxas elevadas durante um bom período.

Sabemos como reduzir a pobreza? Como acabar com os preconceitos (de raça, de gênero, de origem regional etc.)? Como melhorar a qualidade do ensino e motivar os jovens para o estudo? Como controlar o consumo de drogas, o narcotráfico e a criminalidade? Não, na verdade, não sabemos. Sabemos apenas que a violência assumiu proporções que ninguém naquela época poderia ter antevisto.

Esse novo universo social e político obviamente não cabe no singelo modelo bipolar das velhas esquerdas. No mundo atual, o Estado faz uma parte, organizações partidárias fazem outra, ONGs, ainda outra, e empresas privadas também contribuem. O quadro de relacionamentos, parcerias e sinergias tem, portanto, uma complexidade que os antigos adeptos da tomada revolucionária do poder não poderiam ter sequer cogitado.

Bolívar Lamounier, doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia (EUA), é sócio-diretor da Augurium Consultoria e autor do livro "Da Independência a Lula: Dois Séculos de Política Brasileira" (2005), entre outras obras.