quarta-feira, abril 27, 2005

Merval Pereira:Palavras ao léu

Há frases que nunca foram ditas e entram para a História, e algumas até podem mudar os rumos da História. Outras, ditas no calor do improviso, podem criar problemas políticos sérios. Acho que a última do Lula, culpando os cidadãos pelos juros altos, está nessa categoria. Talvez a mais famosa frase não dita seja a atribuída ao brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da UDN na campanha presidencial de 1945.

Favorito, o brigadeiro foi atingido por um boato espalhado pelo empresário getulista Hugo Borghi, que apoiava a candidatura do general Eurico Gaspar Dutra, do PSD. A declaração segundo a qual o brigadeiro Eduardo Gomes dizia não necessitar do "voto dos marmiteiros" marcou-o como elitista, e levou o povo a apoiar Dutra.

Na verdade, o brigadeiro dissera que não queria o voto da "malta de desocupados" que apoiava Getúlio Vargas. O termo "malta", além de significar "bando", identificava também, segundo o dicionário, "um grupo de operários que percorrem as linhas férreas levando suas marmitas", e Borghi apegou-se a essa versão para espalhar o boato que mudou o rumo da eleição de 1945.

"Esqueçam o que escrevi", frase atribuída ao ex-presidente Fernando Henrique, não teve maiores conseqüências, a não ser irritá-lo até hoje, que nega tê-la pronunciado. Mas uma outra, a que classificava de "vagabundos" os que se aposentavam muito cedo, transformou-se, na voz da oposição, em um xingamento generalizado contra os aposentados, e virou arma forte de campanha política.

Também o general João Figueiredo, ao dizer que preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo, caiu no rol dos autores de frases que não deveriam ser ditas, no qual entrou definitivamente o presidente Lula ao culpar o "comodismo" dos cidadãos que "não levantam o traseiro" pelos altos juros que os bancos cobram.

Como se não fosse ele, em última instância, o responsável por tal política e o único que, mesmo sem levantar "o traseiro" da cadeira, é capaz de alterá-la. Além da grosseria, o presidente demonstrou em poucas palavras que não sabia do que estava falando.

Segundo dados do Banco Central, a taxa média de juros não varia muito: nos sete maiores bancos (BB, Bradesco, Itaú, Caixa, HSBC, Unibanco e ABN Real), que representam 80% do sistema, a menor taxa, a da Caixa, é 7,36% ao mês, não muito diferente da maior, que é de 8,16% do HSBC.

Se o cidadão comum levantasse "o traseiro" para pesquisar a menor taxa, descobriria o Banco Votorantim, que cobra apenas 1,63% no cheque especial. Mas teria que ter pelo menos R$ 100 mil para abrir a conta e usufruir desse privilégio.

Ontem, como não dá o braço a torcer, o presidente Lula voltou ao tema para dizer que todo mundo reclama dos juros altos, mas o consumo continua subindo. De maneira torta, tocou no ponto que deveria ter sido o foco de sua atenção desde o dia anterior, quando lançou o Programa Nacional de Microcrédito Orientado, com R$ 600 milhões. O presidente disse que, mesmo com as taxas altas, é possível continuar crescendo o consumo porque o governo, com o que chamam de "choque de crédito popular", deu acesso a dinheiro barato a um grande número de pessoas. Segundo especialistas, o crédito ao consumidor teve um aumento real de 14%, especialmente devido ao desconto em folha de pagamentos, que permitiu taxas mais baratas com a garantia do desconto direto.

O receio de alguns economistas é que, a médio prazo, a inadimplência nesse tipo de empréstimo pode crescer, e os trabalhadores procurarão a Justiça do Trabalho para impedir o que alguns advogados já classificam de "confisco" do salário, criando um impasse jurídico que pode ter conseqüências financeiras graves. De fato, já existem algumas ações na Justiça nesse sentido, e o governo estuda a possibilidade de editar uma medida provisória que torne possível juridicamente o desconto em folha sem que a CLT seja invocada para impedi-lo.

Com seu "otimismo contagiante", na definição do secretário de Defesa Donald Rumsfeld, o presidente Lula adiantou-se aos estudiosos dizendo que o que está acontecendo no Brasil é uma novidade "que não está nos livros de economia". Pode ser, mas se for assim, o Brasil será um caso internacional, já que não existem ainda demonstrações concretas de que o microcrédito faça substancial diferença em nível macroeconômico.

A economista Isobel Coleman, do Council of Foreign Relations de Nova York (um centro de estudos independente fundado em 1921, que tem David Rockfeller como presidente de honra, um ex-secretário de comércio de Nixon como presidente e um ex-secretário do Tesouro de Clinton como vice-presidente) escreveu um artigo no recente número da revista do Fletcher Fórum of World Affairs, da Universidade Tufts, defendendo o microcrédito como "um instrumento efetivo de desenvolvimento", embora admita que não existam ainda indicações suficientes de que ele possa ser algo mais do que um simples programa social subsidiado pelos governos.

Segundo ela, mesmo os programas que têm a intenção de serem auto-sustentáveis conseguem cobrir apenas 70% de seus custos. Mesmo assim, Isobel Coleman diz que uma avaliação dos programas de microcréditos não deve ser baseada simplesmente na sua lucratividade, ou até mesmo na sua sustentabilidade, mas no custo-benefício para realizar o desenvolvimento.

Na sua análise, o microcrédito, colocando os pobres com acesso ao mundo financeiro, apóia vários outros objetivos de desenvolvimento, como o aumento de matrículas nas escolas e a melhoria na nutrição e na saúde das crianças e das mães.

O GLOBO

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