domingo, agosto 15, 2004

MAÍLSON DA NÓBREGA

O ESTADO DE S.PAULO Domingo, 15 de agosto de 2004

Stalinismo cultural

O malsinado projeto de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) teria sido inspirado em idéias de artigo do secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães ou com elas coincidiria. Cacá Diegues, Miriam Leitão, Merval Pereira, Arnaldo Jabor criticaram a proposta e seus contornos stalinistas. O mesmo se viu nos editoriais do Estado, da Folha de São Paulo e do Globo de domingo passado.
O projeto mostra os contraste deste governo. A banda "A" conduz de forma responsável a gestão da economia, enquanto a banda "B", saudosa da era Vargas, é anticapitalista, despreza a importância da propriedade privada e assim por diante. O ministro Gilberto Gil associou seu nome ao projeto e à banda "B", o que não faz justiça ao seu passado de lutas pela democracia.
Deve ter comprado gato por lebre.
Tais contradições resultam da inacabada transição do PT. Lula reproduz por estas plagas a trajetória dos socialistas europeus do pós-guerra, mas diferentemente deles teve que escolher um atalho para chegar ao poder. Lá, a convergência às novas idéias e à moderação levou muitos anos para angariar o apoio da convenção partidária. Aqui, a Carta ao Povo Brasileiro, a boa nova, foi aprovada pelo diretório a quatro meses das eleições.
Daí a convivência conspícua do velho e do novo no governo. A crença na democracia e em uma economia orientada pelo mercado se mistura com visões autoritárias e devaneios estatizantes.
O artigo de Guimarães impressiona pelo seu antiamericanismo. Segundo análise de Merval Pereira, "todo seu raciocínio vai no sentido de conter a indústria audiovisual americana e estimular meios de comunicação brasileiros a colaborar para a criação de uma 'cultura nacional', sem a qual se 'enfraquece a capacidade do Estado de promover a defesa dos interesses nacionais'".
Incorporadas no projeto, essas idéias criaram um monstrengo de inspiração autoritária, que se transformado em lei submeteria a produção audiovisual a um pequeno grupo de burocratas. A Ancinav teria também o poder de tributar e assim aumentar o preço dos ingressos de cinema e de outros canais de lazer.
Para Miriam Leitão, basta começar a ler o projeto para concluir o quanto ele é abusivo.
Outro aspecto impressionante do artigo, que busca desqualificar ações de governos passados, é a crítica à importação de modelos institucionais (americanos, provavelmente), como as agências reguladoras, a autonomia do Banco Central e o regime de metas de inflação, que constituiriam exemplos de "mentalidade e atitudes miméticas".
A crítica se aplicaria, por extensão, aos outros países que adotaram esses modelos. Agências reguladoras autônomas, uma invenção americana do século 19, existem onde houve privatização (que o autor condenaria) de serviços de infra-estrutura. A idéia de autonomia formal dos bancos centrais nasceu nos EUA, mas o Reino Unido, o Japão e os membros da zona do euro a adotaram nos anos 1990. O regime de metas de inflação, da Nova Zelândia, vigora em mais de 50 países. O que é bom se copia sem preconceitos ideológicos.
A rigor, seria de condenar nossos republicanos por imitarem a democracia americana, que como se sabe foi uma revolução das mais profundas da História. Para Bernard Bailyn, "as reformas sociais e políticas que marcaram a Revolução Francesa já estavam parcialmente em vigor na América muito antes": a separação entre o Estado e a Igreja, a igualdade perante a lei, a abolição dos privilégios e a proteção dos indivíduos contra o poder coercitivo do governo. Por isso, lá não existe Ancinav.
Como disse Jean-François Ravel, referindo-se aos franceses, "o mistério do antiamericanismo não é a desinformação - a informação sobre os EUA é muito fácil de encontrar - é a vontade de estar desinformado".
Um exemplo para contrapor os argumentos de Guimarães é a nossa privatização das telecomunicações em 1998 e a criação da agência reguladora, a Anatel. De lá para cá, a densidade telefônica saltou de 14 para 100 acessos por habitante. Mais de 50 milhões de brasileiros puderam comprar telefones cada vez mais baratos. Passamos de 24 para 94 milhões de telefones celulares e fixos em serviço.
Se as idéias por trás da Ancinav valessem, deveríamos esquecer Graham Bell, o americano inventor do telefone, e usar tambores soberanos.
Publicadoem: Sun, Aug 15 2004 1:21 PM

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