sábado, janeiro 17, 2015

Je suis ‘demagogô’ - Guilherme Fiuza Jornal O Globo

Je suis 'demagogô' - Jornal O Globo

Je suis 'demagogô'

Depois que Dilma Rousseff tomou posse defendendo a Petrobras, qualquer piada está liberada — inclusive as que envolvem Maomé. Os facínoras do Estado Islâmico e da al-Qaeda não têm ideia do nível de escárnio a que os brasileiros estão submetidos cotidianamente. O PT monta o maior sistema de pilhagem já visto na República e a presidente conclama o país a um pacto contra a corrupção. Entenderam o que é achincalhe, queridos sanguinários de Alá?

A sorte dos picaretas do Ocidente e do Oriente é que a opinião pública continua dormindo seu sono das mil e uma noites. Para se ter uma ideia, o mundo culto está discutindo há mais de uma semana a legitimidade de um massacre. Isto é em si uma piada — mas não ria, porque vão te acusar de sacrilégio. O pensamento morreu. Você não vale mais o quanto pensa, vale a bandeira que levanta. Então, não perca tempo: repita também, como um brado no Ipiranga, que o Islã é legal e matar os outros não é legal. Pronto, você está no altar do jardim de infância global.

Daqui para frente, o mundo terá que ser legendado, para facilitar a compreensão. Chico Caruso já deu a senha no GLOBO: uma charge de Maomé com as inscrições "este não é Maomé" e "isto é um desenho de humor". Perde um pouco a graça, porque os heroicos defensores de Charlie, do Islamismo, do humanismo e do bom-mocismo ficam sem bateria para esgrimir seu óbvio fulgurante. Mas reduz a ameaça — dos terroristas e, principalmente, dos pernósticos.

Talvez uma das figuras mais representativas deste momento esquisito seja o Papa Francisco. Sua Santidade tem provavelmente uma espécie de João Santana ao pé do ouvido, para soprar-lhe as últimas tendências do mercado. Foi assim que o líder máximo da Igreja Católica mergulhou na causa gay. Vamos tentar legendar. A defesa dos direitos dos gays não é só importante, é urgente. Trata-se de derrubar um muro de hipocrisia que faz muita gente sofrer à toa. Mas e o Papa com isso?

Bem, Francisco também pode achar que é uma causa urgente. Só que ele lidera uma Igreja cuja doutrina não aceita o homossexualismo. Não aceita nem a camisinha! No Catolicismo, o sexo tem que ter fins reprodutivos. Quando a Igreja Católica aceitará uma família gay, com dois pais ou duas mães? Talvez semana que vem — desde que ela destrua alguns de seus pilares e erga outros em seus lugares, ou seja, que refunde a si mesma. Só que, em geral, isso não é uma questão de dias, mas de séculos. Ou seja, o Papa bonzinho está jogando para a arquibancada.

Mas a plateia ama. Lembra até um pouco Lula, o Papa brasileiro, quando assumiu o governo mantendo as diretrizes econômicas do antecessor (porque não é bobo) e gritando contra os juros altos. Inaugurou o primeiro governo de oposição da História, e não saiu mais de lá.

Depois do atentado em Paris, a reunião no departamento de marketing do Vaticano deve ter fervido. Francisco tinha ali várias causas bondosas para escolher. Demorou um pouco, mas saiu a decisão: o Papa defendeu o Islã contra as ofensas dos chargistas franceses — uma posição candidamente desastrosa. O marqueteiro de Francisco deve ter feito o cálculo certeiro: nada mais surpreendente, exótico e progressista do que um líder católico defendendo o Islamismo. E ainda soltou a pérola: "Liberdade de expressão tem limite".

Não, Francisco. Não tem. Seria como declarar que democracia tem limite. O que deve ser limitado — e já é, pela lei — é a expressão criminosa ou lesiva, não a liberdade. Está vendo como é dura a vida do populista? Esse negócio de ficar levantando bandeiras não é fácil, a gente acaba se atrapalhando mesmo.

Nesse aspecto, o PT é muito mais profissional. Eles não inventam. São os heróis da resistência contra a ditadura e a direita, e fim de papo. Essa tecla única já lhes rendeu 12 anos de paraíso parasitário. Depois de avançar no Banco do Brasil e compor a obra-prima do mensalão (que, incrivelmente, não os tirou do poder), depenaram a Petrobras sem perder o rebolado: a culpa é da oposição neoliberal que quer privatizar o que é nosso. Contando, ninguém acredita. Nem com legenda.

A indústria da demagogia não para de crescer. Acenda um cigarro na praia e aguarde a reprovação do vizinho. Ele aprendeu que o tabagismo é contra a cidadania. E a sua fumaça a céu aberto pode ensejar um brado civilizatório, dependendo da direção do vento. A Lei Seca é outro fenômeno. Seria bem mais eficiente se fosse móvel e caçasse as condutas suspeitas (dos que a evitam facilmente pelo Twitter). Mas fica ali naquela blitz teatral, travando a cidade e constrangendo uma maioria de não-alcoolizados — detidos e investigados como num Estado policial. É um abuso, mas o cidadão resolveu achar que é a sua única chance de sobrevivência.

O mais curioso é identificar, na turma do "Je suis Charlie", várias das vozes que simpatizaram com a boçalidade dos black blocs. Violência é violência — mas o véu da demagogia a tudo abençoa. Os plantonistas da bondade bem que podiam sair do armário e bradar: "Je suis demagogô".

Guilherme Fiuza é jornalista



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