05 Dezembro 2014
Entre 1819 e 1823, Beethoven transformou uma valsa do obscuro compositor austríaco Anton Diabelli no que viria a ser considerada uma síntese de sua obra e uma das mais notáveis peças para piano da música ocidental - as 33 variações em sol maior, opus 120. Ela se distingue pela proeza de seu autor, já surdo àquela altura, de trabalhar apenas com um punhado de notas para construir um conjunto de tamanha diversidade. Pedindo perdão à memória do gênio pela analogia, é o que parecem ter feito também, com indiscutível maestria, os participantes da corrupção enraizada na Petrobrás.
A sua obra - ou o que dela já se pode conhecer - também consiste em conceber um amplo leque de ações criminosas a partir de uns poucos elementos, rearranjando-os com uma criatividade que não cessa de chamar a atenção. A mais recente variação a chegar ao conhecimento geral está contida nos depoimentos em regime de delação premiada do executivo Augusto Ribeiro de Mendonça Neto, do Grupo Toyo Setal, um dos mais de 20 empresários e altos dirigentes do autodenominado "clube" de empreiteiras detentoras de contratos com a Petrobrás, apanhados pela Operação Lava Jato.
Na quarta-feira, dia seguinte à decisão do ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF), de conceder habeas corpus ao diretor de Serviços da estatal (de 2003 a 2012) Renato Duque, no primeiro ato do gênero desde a deflagração da Lava Jato, em março, o juiz federal Sergio Moro tornou público que Mendonça Neto acusara Duque de exigir que uma parte da propina cobrada dos interessados em fazer negócios com a petroleira fosse encaminhada ao Partido dos Trabalhadores - como doação legal. Os demais valores, instruiu o então funcionário apadrinhado pelo partido, deveriam ser-lhe entregues em dinheiro ou depositados em determinadas contas no exterior.
É a primeira vez desde a eclosão do escândalo que o País fica sabendo pela boca de um dos envolvidos que dinheiro sujo serviu para irrigar de forma limpa as finanças de uma agremiação política - uma variação que não faria feio perto de Beethoven. Segundo o delator, dos pelo menos R$ 152 milhões arrecadados por Duque, cerca de R$ 4 milhões foram engrossar, entre 2008 e 2011, os recursos contabilizados do Partido dos Trabalhadores. Para consumar a transferência, Mendonça Neto consultou a secretaria de Finanças da legenda, que o orientou a depositar as doações na sua conta bancária.
À primeira vista parece difícil de distinguir as coisas: de um lado, uma empreiteira é instada a doar a uma sigla, por cima dos panos, montantes que correspondem a uma parcela do pedágio sem o qual não fechará com a Petrobrás os contratos (decerto superfaturados) que ambiciona; de outro lado, uma empreiteira doa a partidos e candidatos, também legalmente, valores oriundos de um patrimônio financeiro engordado - em boa medida, como a cada dia fica mais claro - de contratos inflados, conseguidos mediante suborno. A única diferença é de tempo: no primeiro caso, a doação se segue ao negócio obtido; no segundo, é uma aplicação visando a negócios futuros.
Revelando a sua peculiar visão da realidade, as construtoras investigadas pela lambança na Petrobrás querem que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, aceite um "acordão" que diminua as penas a que estão expostas, sem que os seus controladores e executivos admitam previamente as suas culpas nas delações premiadas a que aceitem se submeter. O acinte justifica a ironia de Janot, para quem as empresas no pelourinho estão tentando formar um "cartel de leniência". Nada deve abalar o acordo tácito do toma lá dá cá entre pagadores e recebedores que se renova a cada ciclo eleitoral - e está se falando de doações legais.
O esquema só será abalado quando pessoas jurídicas não puderem financiar campanhas - o que hoje depende de um único membro do STF, o ministro Gilmar Mendes. Em abril, quando a Corte julgava uma solicitação da OAB nesse sentido, apoiada por firme maioria - 4 votos proferidos e 2 outros prometidos -, Mendes pediu vista dos autos, alegando tratar-se de assunto "complexo", embora se inclinasse pelo regime de doações como está. Passados oito meses, Mendes ainda retém o processo.