A inversão da trajetória de preços do petróleo que está em curso anuncia o colapso do regime chavista. Os indícios apontam para o cenário de uma ruptura violenta
O termômetro tradicional da política venezuelana é fornecido
pelos preços do barril de petróleo. Como regra, as etapas de alta de
preços correspondem a períodos de bonança econômica e estabilidade
política; enquanto as etapas de baixa coincidem com intervalos de crise
econômica e desordem política. O movimento “bolivariano” nasceu no solo
arado pela retração das cotações do barril, em meados da década de 1980,
e o poder de Hugo Chávez consolidou-se ao longo da forte elevação de
preços da década de 2000. Contudo, excepcionalmente, o chavismo armou
uma crise econômica durante o auge das cotações do produto. A inversão
da trajetória de preços que está em curso anuncia o colapso do regime
chavista. Os indícios apontam para o cenário de uma ruptura violenta. O
espectro da Líbia ronda a América Latina.
O chavismo não é uma versão singular do populismo latino-americano. Não é lulismo, nem kirchnerismo. Os analistas convencionais não entenderam a natureza do regime venezuelano quando, em 2008 e 2013, profetizaram uma prudente correção de rumos da política econômica. A “revolução bolivariana” ultrapassou uma barreira desde a fundação do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e o subsequente armamento das milícias chavistas. De lá para cá, fechou-se o caminho político para um retorno aos equilíbrios de mercado.
A “unidade bolivariana” só existe nos discursos de Maduro. A demissão do ministro do Planejamento Jorge Giordani, um expoente da ala marxista do chavismo, em junho, evidenciou as profundas fraturas internas e evitou a aceleração das políticas estatizantes, mas não provocou a reviravolta tantas vezes profetizada. O fraco sucessor de Chávez recusou a “saída para frente” de Giordani, mas não tem os meios para operar um “giro para trás”. Não haverá um Joaquim Levy venezuelano — e nem mesmo um Nelson Barbosa. Estrategicamente paralisado, vergado sob o peso da inflação, do desabastecimento e do aumento do desemprego, o regime tenta apenas impedir a eclosão de uma inevitável hecatombe financeira.
A unidade da oposição, construída em torno de Henrique Capriles, em 2011, não sobreviveu à onda de protestos deflagrada em fevereiro pelo Vontade Popular, o partido dirigido por Leopoldo López. Diferentemente do candidato presidencial oposicionista, López concluiu que a crise do chavismo só não redundaria na “cubanização” completa do regime, com a supressão da pluralidade política, se um levante popular pacífico pusesse um ponto final na agonia. Entretanto, como o tempo demonstraria, Capriles tinha razão: os estudantes e a classe média careciam do apoio ativo dos pobres de Caracas, que abandonaram Maduro, mas ainda não estavam dispostos a sublevar-se contra seus antigos líderes. A repressão implacável aos protestos, a prisão de López e a cassação do mandato de María Corina Machado representaram a travessia de uma nova fronteira na marcha rumo à ditadura. Ao mesmo tempo, cindiram a oposição em duas correntes separadas por um fosso de amargura.
Uma bomba-relógio paira sobre a Venezuela. As finanças do país são sustentadas artificialmente por um balão de oxigênio inflado pela China em 2007, quando se negociou um empréstimo de US$ 46 bilhões pagáveis em petróleo. Como contrapartida, o regime chavista estabeleceu uma relação de dependência neocolonial, conectando as exportações petrolíferas a importações compulsórias de manufaturados chineses. O torniquete apertou com a recusa da Opep, no fim de novembro, de cortar sua produção. Diante da perspectiva de um ciclo de baixos preços do barril, Maduro despachou seu ministro das Finanças à China, em busca de novos empréstimos. Os chineses, porém, não parecem propensos a mais que uma negociação de prazos. Hoje, Caracas manobra na tempestade, tentando revender a bancos americanos títulos da dívida de países envolvidos nas aquisições de petróleo subsidiado venezuelano.
As sondagens revelam que os índices de aprovação do governo de Maduro rondam a marca fúnebre de 25%. Há um quarto de século, índices similares, produzidos pela depressão econômica que resultou da etapa de baixos preços do barril, detonaram uma insurreição popular em Caracas contra o presidente Carlos Andrés Perez. A repressão ao “Caracazo” de fevereiro de 1989 deixou um saldo de centenas de mortos, preparou a cena para o frustrado golpe de Chávez de 1992 e encerrou a longa história da democracia oligárquica na Venezuela. Sinais palpáveis, inquietantes, de um novo “Caracazo” transpiram da frustração nos bairros pobres da capital. Dessa vez, contudo, o governo conta, além da polícia e dos militares, com as milícias chavistas.
O Brasil já desempenhou papel construtivo na Venezuela, no passado recente. No início de 2003, diante da crise aberta pela paralisação oposicionista na empresa estatal de petróleo, Lula tomou a iniciativa de constituir o Grupo de Países Amigos da Venezuela, que incluía os EUA e a Espanha, evitando uma ruptura catastrófica. Depois, porém, o lulopetismo optou pela proteção incondicional do chavismo, até converter o Mercosul num casulo diplomático para a deriva autoritária da “revolução bolivariana”. O vergonhoso silêncio do Itamaraty diante das comprovadas torturas aplicadas em manifestantes detidos, da prisão ilegal de López e da cassação do mandato de Corina Machado desmoralizou o Brasil diante de todos os setores da oposição venezuelana. Mesmo assim, não existe nenhuma outra potência regional capaz de alinhavar uma saída para o impasse no país vizinho.
O Brasil tem a alternativa de mobilizar a OEA, a Celac e a Unasul para falar a dura verdade a Maduro, exigindo a restauração das liberdades públicas e das garantias democráticas, como pressupostos para um diálogo nacional genuíno. A bomba-relógio não será desarmada milagrosamente. Aí na esquina, do outro lado da fronteira, desenham-se os contornos de uma Líbia.
Demétrio Magnoli é sociólogo
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O chavismo não é uma versão singular do populismo latino-americano. Não é lulismo, nem kirchnerismo. Os analistas convencionais não entenderam a natureza do regime venezuelano quando, em 2008 e 2013, profetizaram uma prudente correção de rumos da política econômica. A “revolução bolivariana” ultrapassou uma barreira desde a fundação do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e o subsequente armamento das milícias chavistas. De lá para cá, fechou-se o caminho político para um retorno aos equilíbrios de mercado.
A “unidade bolivariana” só existe nos discursos de Maduro. A demissão do ministro do Planejamento Jorge Giordani, um expoente da ala marxista do chavismo, em junho, evidenciou as profundas fraturas internas e evitou a aceleração das políticas estatizantes, mas não provocou a reviravolta tantas vezes profetizada. O fraco sucessor de Chávez recusou a “saída para frente” de Giordani, mas não tem os meios para operar um “giro para trás”. Não haverá um Joaquim Levy venezuelano — e nem mesmo um Nelson Barbosa. Estrategicamente paralisado, vergado sob o peso da inflação, do desabastecimento e do aumento do desemprego, o regime tenta apenas impedir a eclosão de uma inevitável hecatombe financeira.
A unidade da oposição, construída em torno de Henrique Capriles, em 2011, não sobreviveu à onda de protestos deflagrada em fevereiro pelo Vontade Popular, o partido dirigido por Leopoldo López. Diferentemente do candidato presidencial oposicionista, López concluiu que a crise do chavismo só não redundaria na “cubanização” completa do regime, com a supressão da pluralidade política, se um levante popular pacífico pusesse um ponto final na agonia. Entretanto, como o tempo demonstraria, Capriles tinha razão: os estudantes e a classe média careciam do apoio ativo dos pobres de Caracas, que abandonaram Maduro, mas ainda não estavam dispostos a sublevar-se contra seus antigos líderes. A repressão implacável aos protestos, a prisão de López e a cassação do mandato de María Corina Machado representaram a travessia de uma nova fronteira na marcha rumo à ditadura. Ao mesmo tempo, cindiram a oposição em duas correntes separadas por um fosso de amargura.
Uma bomba-relógio paira sobre a Venezuela. As finanças do país são sustentadas artificialmente por um balão de oxigênio inflado pela China em 2007, quando se negociou um empréstimo de US$ 46 bilhões pagáveis em petróleo. Como contrapartida, o regime chavista estabeleceu uma relação de dependência neocolonial, conectando as exportações petrolíferas a importações compulsórias de manufaturados chineses. O torniquete apertou com a recusa da Opep, no fim de novembro, de cortar sua produção. Diante da perspectiva de um ciclo de baixos preços do barril, Maduro despachou seu ministro das Finanças à China, em busca de novos empréstimos. Os chineses, porém, não parecem propensos a mais que uma negociação de prazos. Hoje, Caracas manobra na tempestade, tentando revender a bancos americanos títulos da dívida de países envolvidos nas aquisições de petróleo subsidiado venezuelano.
As sondagens revelam que os índices de aprovação do governo de Maduro rondam a marca fúnebre de 25%. Há um quarto de século, índices similares, produzidos pela depressão econômica que resultou da etapa de baixos preços do barril, detonaram uma insurreição popular em Caracas contra o presidente Carlos Andrés Perez. A repressão ao “Caracazo” de fevereiro de 1989 deixou um saldo de centenas de mortos, preparou a cena para o frustrado golpe de Chávez de 1992 e encerrou a longa história da democracia oligárquica na Venezuela. Sinais palpáveis, inquietantes, de um novo “Caracazo” transpiram da frustração nos bairros pobres da capital. Dessa vez, contudo, o governo conta, além da polícia e dos militares, com as milícias chavistas.
O Brasil já desempenhou papel construtivo na Venezuela, no passado recente. No início de 2003, diante da crise aberta pela paralisação oposicionista na empresa estatal de petróleo, Lula tomou a iniciativa de constituir o Grupo de Países Amigos da Venezuela, que incluía os EUA e a Espanha, evitando uma ruptura catastrófica. Depois, porém, o lulopetismo optou pela proteção incondicional do chavismo, até converter o Mercosul num casulo diplomático para a deriva autoritária da “revolução bolivariana”. O vergonhoso silêncio do Itamaraty diante das comprovadas torturas aplicadas em manifestantes detidos, da prisão ilegal de López e da cassação do mandato de Corina Machado desmoralizou o Brasil diante de todos os setores da oposição venezuelana. Mesmo assim, não existe nenhuma outra potência regional capaz de alinhavar uma saída para o impasse no país vizinho.
O Brasil tem a alternativa de mobilizar a OEA, a Celac e a Unasul para falar a dura verdade a Maduro, exigindo a restauração das liberdades públicas e das garantias democráticas, como pressupostos para um diálogo nacional genuíno. A bomba-relógio não será desarmada milagrosamente. Aí na esquina, do outro lado da fronteira, desenham-se os contornos de uma Líbia.
Demétrio Magnoli é sociólogo