segunda-feira, julho 21, 2014

Era de incertezas - Dorrit Harazim

Era de incertezas - Jornal O Globo

Era de incertezas

Desde os ataques terroristas que transfiguraram Nova York em 11 de Setembro de 2001, o mundo passou a viver aos solavancos, mas acabou por se adaptar à ausência de serenidade. Até a tarde da quinta-feira passada. A notícia da derrubada de um avião comercial com 298 pessoas a bordo, possível alvo equivocado de um míssil disparado de solo ucraniano, mudou tudo.

O choque anterior afetara sobretudo a psicologia da nação americana, alterando suas leis e as relações do governo com seus cidadãos. "Nos tornamos paranoicos", resumiu o jornalista Andrew Leonard. A tragédia de agora com o avião da Malaysia Airlines que partira de Amsterdã rumo a Kuala Lumpur afeta o sistema nervoso global.

Entramos com tudo na era da incerteza do século 21. As recentes comemorações do centenário do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) já haviam refrescado nossa memória quanto às guinadas sem roteiro que marcam a História.

O novo ciclo de matança e desalento ocorrendo simultaneamente na Faixa de Gaza não ajuda a acalmar o planeta. Mas essa quarta guerra tragicamente rotineira que opõe as Forças Armadas de Israel à militância palestina do Hamas em Gaza tende a ser vista pelo resto do mundo como um brutal conflito regional, de consequências previsíveis: mais e mais mortes entre uma população civil já castigada. Até a noite de sexta feira estimava-se em 300 o número de vítimas civis da maciça investida israelense.

Na derrubada do vôo MH 17, ao contrário, os desdobramentos geopolíticos não seguem qualquer narrativa previsível. Está tudo em aberto e em jogo — o futuro de Vladimir Putin e de sua Rússia imperial, a existência da Ucrânia como nação soberana, os contornos de uma emergente Neo-guerra Fria, os limites da aliança entre Estados Unidos e Europa.

A internacionalização da guerra interna da Ucrânia certamente não estava nos planos nem de Putin nem dos rebeldes separatistas que controlam a região fronteiriça à Rússia, onde caíram os destroços do avião. Mas ela se tornou inevitável pela tragédia no ar ter ocorrido no coração da Europa, poder ser considerada uma possível ameaça à segurança europeia e ter no rol das centenas de vítimas cidadãos de Holanda, Grã-Bretanha, Alemanha, Austrália, Bélgica, Canadá, Estados Unidos, além de malaios, indonésios e outras nacionalidades não confirmadas de imediato.

Houve grande cautela inicial dos líderes ocidentais em apontar Moscou como responsável direto ou indireto pelo suposto disparo de um míssil de fabricação russa em mãos dos rebeldes separatistas. São tantas as incertezas e versões conflitantes do episódio que, à exceção da Austrália e dos Estados Unidos, a maioria prefere obter provas contundentes antes de se comprometer. As interceptações de diálogos entre rebeldes e russos sobre o disparo de um míssil BUK, divulgadas pelo governo da Ucrânia, são altamente comprometedores — mas de autenticidade não garantida.

Até a noite de sexta-feira não se sabia sequer onde tinham ido parar a valiosa caixa-preta e o gravador de dados do vôo MH 17, recuperados da cena do desastre. Segundo o governo de Kiev, ambos teriam sido recuperados pelos serviços de emergência ucranianos. De acordo com Aleksandr Borodai, o autoproclamado líder separatista que tem controle pleno da região, os artefatos estariam em mãos dos rebeldes.

Os 25 monitores enviados ao local da queda pela Organização de Segurança e Cooperação da Europa (OSCE) nada puderam fazer e pouco puderam ver durante os 75 minutos que permaneceram em Grabovo, vigiados pelos rebeldes armados. Com toque de recolher e uma guerra aberta em andamento na região, é difícil imaginar como e quando se dará a complexa, urgentíssima e monumental operação de resgate dos quase 300 corpos espalhados a céu aberto.

Decorridos 13 anos desde o ataque às Torres Gêmeas, viajantes do mundo inteiro já haviam se conformado em tirar os sapatos, serem apalpados, revistados e tratados como possíveis terroristas em aeroportos. Surge agora a possibilidade de o seu avião ser atingido por algum míssil terra-ar vindo ninguém sabe de onde nem por que, se de propósito ou por equívoco, como parece ter sido o caso do MH 17. Não por acaso, começam a circular notícias não confirmadas de que Israel já estaria equipando a frota de aviões da empresa estatal El Al com sistemas antimísseis.

Num cenário assim ainda teremos saudade dos anos 2012 e 2013, considerados os mais seguros da aviação comercial desde o final da II Guerra. É em tempos de insegurança e paranoia que um episódio incompreensível como a derrubada do Boeing da Malaysia Airlines encontra terreno fértil para se transmutar em conflagração. Por ora, é Vladimir Putin quem tem em mãos a chave do apaziguamento. Só não se sabe se ele vai usá-la.

Dorrit Harazim é jornalista



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