FOLHA DE SP - 14/12
A convocação à unidade já foi integrada ao discurso da publicidade no país da Copa. Será repetida à exaustão
O
país da Copa é grande e bobo. "Esta será a Copa das Copas", disse a
presidente, de boca cheia, na cerimônia de sorteio dos grupos. No país
dela, que é o nosso, ninguém circula nas cidades travadas, nas estradas
paralisadas, nos aeroportos congestionados --mas 12 arenas
superfaturadas, em recordistas 12 sedes, receberão a mais cara das
Copas. Do enclave do Sauípe, uma bolha segura, esparramou-se pelo mundo a
linguagem do verde-amarelismo balofo. No país da Copa, um governo
"popular" e "de esquerda" reverbera, tanto tempo depois, as frases e os
tiques do general-presidente que gostava de futebol. Há um cheiro de
queimado no ar.
"O Brasil está muito feliz em receber todos nesta
Copa porque somos um povo alegre e acolhedor." Violência é a palavra da
hora --e ela surge em curiosas associações com a "Copa das Copas". A
barbárie das torcidas do Atlético Paranaense e do Vasco não foi
deplorada por seus significados intrínsecos, mas pelas mensagens que
supostamente envia ao mundo. Gaiatos da política, do marketing e do
colunismo ensaiaram uma sentença que menciona a violência "dentro e fora
dos estádios". É senha, com endereço certo: no saco fundo, cabem tanto
os torcedores selvagens e os sumidos black blocs quanto manifestantes
pacíficos mas indignados com a "Copa das Copas". O pau vai comer.
"Não
repara a bagunça" --o dístico popular nacional, candidato eterno, e
perfeito, a substituir o "Ordem e Progresso" no núcleo de nossa
bandeira, trai o medo da vergonha. Joseph Blatter entendeu e traduziu,
chamando-nos a congelar a indignação, sublimar as insatisfações, colocar
entre parêntesis as divisões. A unidade em torno de um bem maior, que é
a imagem do país diante do planeta que nos vê: eis a gramática do
discurso político sugerida pelo chefão da potência ocupante. No país da
Copa, a convocação à unidade já foi integrada ao discurso da
publicidade. Será repetida à exaustão, como uma ladainha, até o apito
final. Não estrague a festa, estúpido!
"Será uma Copa para
ninguém esquecer", jactou-se a presidente, formulando uma ameaça
involuntária. A partir do Gabinete de Segurança Institucional,
estrutura-se uma operação de guerra que abrange as três forças em armas e
um desdobrado aparato cibernético. Nas telas dos computadores do
sistema de vigilância, cada arena figura como ponto focal de um envelope
tridimensional de segurança. Nas ruas, o controle físico do perímetro
das arenas, a cargo das PMs, terá a missão de proteger as marcas dos
patrocinadores oficiais da ameaça simbólica representada pela presença
de manifestantes. Jamais, em tempo algum, o Estado serviu tão direta e
exclusivamente a interesses privados. Não: ninguém esquecerá.
O
país da Copa não se respeita. Ontem, o partido do governo celebrou
políticos condenados por corrupção --e, sob o silêncio cúmplice do
presidente de facto e da presidente de direito, achincalhou um STF
composto por juízes que eles mesmos indicaram. O país da Copa perdeu o
autorrespeito. Os líderes governistas manobram para o Congresso não
ouvir um ex-secretário nacional de Justiça que acusa o governo ao qual
serviu de operar uma fábrica de dossiês contra adversários políticos. O
país da Copa perdeu o respeito. As lideranças do PSDB preferem empregar
táticas diversionistas vexatórias a colher assinaturas para uma CPI
destinada a investigar todos os contratos estaduais e federais firmados
com a Siemens. Yes, nós gostamos de futebol.
No vale-tudo da nova
ordem do racialismo, perdemos, ademais, um senso básico de decoro: eu
li --aqui mesmo, não nas catacumbas da internet!-- que Fernanda Lima e
Rodrigo Hilbert formaram "um casal mais parecido com representantes de
afrikâners". Cores, rancores. No país da Copa, nativos felizes,
contentes, de bunda de fora, tocavam caxirola. Foi bonita a festa, pá
--pena que nem começou.