O ESTADÃO - 01/12
Maracutaia, acochambração, falcatrua, artimanha, trapaça. As cinco sonoras palavras, que agasalham o corpo de nossa cultura, nunca deixaram o pano de fundo dos relatos que dão conta da vida social e política do país. Nos últimos tempos, porém, ecoando locuções em defesa e ataque por parte de contendores que se preparam para disputar o campeonato eleitoral de 2014, frequentam com maior intensidade a agenda de manobras erráticas na administração pública. A sensação é inequívoca: o Brasil mais parece uma gigantesca delegacia de polícia. De maneira proposital, atores variados tentam confundir o terreno da licitude com o espaço da ilicitude, o certo com o errado, em aparente estratégia de defesa de interesses de pessoas e grupos. Ao final dessa tentativa de embaralhar as cartas do jogo político, todos perdem: atores individuais e institucionais. A impressão que fica é a de que a disputa eleitoral, nesse final de ano, dá o tom maior do discurso, abrindo espaço para acusações e retaliações e expandindo a desconfiança social nos poderes constituídos.
Vejamos exemplos, a começar pela questão da saúde do deputado José Genoino. Trata-se de paciente com problemas cardíacos a merecer cuidados. A espetacularização montada em torno do caso conferiu ao ex-presidente do PT a imagem de vítima que deve ganhar solidariedade. O contraditório formado mostra, de um lado, ele, José Dirceu e Delúbio Soares como “presos políticos”, conforme se lê na faixa de um grupo sem terra, dissidente do MST; de outro, “foram julgados e cumprem penas por condutas políticas”, no dizer de um próprio petista Olívio Dutra, ex-governador do RS. Um laudo clínico produzido por cinco cardiologistas da Universidade de Brasília atesta que Genoino “é portador de cardiopatia que não se caracteriza como grave”, não carecendo permanecer necessariamente em prisão domiciliar. O STF dará a palavra final, mas é evidente que o processo de vitimização não terminará com o veredicto. O imbróglio foi despejado na cúpula da Câmara Federal, a quem caberá a decisão de conceder aposentadoria por doença do parlamentar. Caso concedida, livrar-se-ia ele do processo de cassação, não sem suspeitas de acochambração.
Dirceu foi contratado por um hotel de Brasília para trabalhar como gerente, sob uma chuva de críticas. Em regime semiaberto, o detento pode sair de manhã e voltar no fim da tarde à prisão. A polêmica se instala pela inusitada decisão de um perfil portentoso do PT vir a gerenciar um estabelecimento hoteleiro. Ora, não há impedimento legal para que amigos façam um contrato de trabalho com ele. Possivelmente, os contratantes (com sua ética) viram nele instrumento de marketing para alavancar vendas. Versões de um lado e de outro, com novas acusações de produção de dossiês, aparecem no entorno da questão dos trens em São Paulo, forma de atenuar impacto das prisões de mensaleiros. O assunto alimenta ódios e paixões entre adversários e admiradores. E o que esperar da decisão do STF de julgar em 2014 a constitucionalidade dos planos econômicos editados nas décadas de 1980 e 1990? Parlamentos de sistemas democráticos convivem bem com a influência dos Poderes Executivos, particularmente no que concerne à aprovação de normas voltadas para aperfeiçoamento de seu desempenho (funcional/financeiro/contábil etc). Já o exercício do lobby sobre o Poder Judiciário tem sido cauteloso por este simbolizar a balança da Justiça.
No caso dos perdedores da poupança, tal preocupação de assédio inexiste. Autoridades passaram a abordar os ministros da Corte Suprema com um discurso catastrófico: o sistema financeiro ameaça desmoronar; 150 bilhões de desembolso dos bancos poderiam chegar a 600 bilhões de reais com a cobertura a todos os poupadores, não apenas aos que entraram com recursos. Mas o Instituto de Defesa do Consumidor apresenta uma conta de cerca de 8,4 bilhões. O caso será emblemático. O STF já julgou ações e estabeleceu parâmetros sobre a feição jurídica do sistema monetário e qualquer decisão terá forte repercussão, eis que, de um lado, se ouvirá o barulho de um contingente que há 20 anos espera a decisão, e, de outro, a voz forte do Estado em defesa do status quo bancário. Suas Excelências aprovarão as fórmulas usadas para calcular a correção da caderneta de poupança? Os bancos ganharão? Eventual reversão das expectativas sociais terá consequências eleitorais? Como se vê, nem o Poder Judiciário escapa ao cerco do jeitinho brasileiro de ser.
Manobras para deixar as coisas conformadas ao patamar das conveniências invadem também o painel das estatísticas nacionais. A maquiagem sobre índices de crescimento e contas públicas é recorrente. No momento, a polêmica gira em torno da reavaliação do PIB de 2012, que teria passado de 0,9% para 1,5, apesar de o IBGE não ter divulgado a revisão. Como pano de fundo, a proximidade do fim de mandato do governo Dilma e a comparação com administrações anteriores. E haja pressão para mudança de metodologia. Dados recorrentes, passíveis de correção, são os do balanço do PAC, mostrando, de um lado, cronogramas dentro do prazo e, de outro, obras empacadas, como a transposição do São Francisco e a Transnordestina, a par de projetos com cara de interrogação como o Trem de Alta Velocidade (TAV), suspenso em 2011. O TCU, por sua vez, suspende concurso do Ministério do Planejamento por suspeita de favorecimento a indicados políticos. Ufa! O que esse painel tortuoso mostra sobre o país? Escancara a evidência de que a ausência de eficiente institucionalização política é o motor da corrupção. Os papéis institucionais acabam subordinados a demandas exógenas. A modernização, que deveria puxar nova escala de valores, a partir da meritocracia, abre fontes de riqueza, fazendo ascender novos grupos, os quais, por sua vez, acumulam recursos para escalar os degraus do poder. O Brasil novo teima em vestir o manto roto do passado.