domingo, julho 07, 2013

Quem morde o cão? FLÁVIO TAVARES

Entregaram a "solução"
àqueles que as "vozes
das ruas" apontam
como responsáveis
ou culpados diretos

FLÁVIO  TAVARES* ZERO HORA 7/7/2013

A mais clássica e surrada das aulas de jornalismo ensina que se um cão morder alguém "não é notícia". Porém, (e aí vem a lição!) se alguém morder um cão, deve-se apurar em detalhes. Já imaginaram? "Fulano de tal, pacato funcionário público, agrediu a dentadas um cãozinho "poodle", branco, ferindo-lhe no ventre, nas patas e quase lhe arrancando as orelhas por motivo fútil e não justificado, apenas por desconfiar do latido de alerta do dito cujo em passeio pela rua...".
Se o agredido for um feroz "pitbull" ou "fila", o mordedor será herói, entrevistado no programa do Ratinho na TV às custas do inocente cusco. E, pelo direito de resposta, até a vítima será ouvida!
Agora, em função dos protestos de rua, nossos governantes saíram a morder os "poodles". Enganaram-se com o som e tomaram o alerta do povo como um tema da formalidade político-eleitoral, não como um problema da sociedade inteira. E entregaram a "solução" àqueles que as "vozes das ruas" apontam como responsáveis diretos pela corrupção, descaso e demais males.
Ou, como diz o povo: a raposa guardará o galinheiro!

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Assim, com a força mágica do plebiscito, teremos (no futuro) a "reforma política" _ haverá (ou não) voto "por distrito" e "em lista fechada", dinheiro público financiará os candidatos, além de outras maquiagens e batom. Mas não tocarão no cerne nem na raiz da tropelia política: os partidos continuarão iguais, dirigidos por esses que aí estão e todos sabem quem são e como são. A cada dois anos nos apresentarão o cardápio de candidatos e (desse menu indigesto) nós teremos de escolher no voto, para que, depois, eles se banqueteiem.
Sim, pois a cada dia surge uma roubalheira nova e nos esquecemos da anterior. Tanta corrupção nos confunde e é como se nada víssemos, tal qual a luz forte e direta sobre os olhos nos cega. Um exemplo? Já não se fala nos escândalos nas secretarias do Meio Ambiente da Prefeitura de Porto Alegre e do governo do Estado. Tudo é recente, só dois meses, e os implicados continuam como grão-senhores ou finas-damas.
No estilo da política dominante, a realidade concreta é o que menos importa. Nos dias iniciais das manifestações, quando São Paulo parecia em chamas, uma TV acompanhava ao vivo os gritos e gestos da rua, quando o locutor anunciou que interromperia a transmissão "devido ao horário político obrigatório". Em seguida, Paulo Maluf (exatamente ele!) apareceu na tela falando da "honestidade pública" em propaganda do PP (um dos 17 partidos da "base alugada") e proclamou: "Lugar de bandido é na cadeia...".
Nada era mais político do que a rua naquele momento, mas o "horário político" previsto em lei sepultava a própria realidade política!

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Há anos, "aperfeiçoamos" o capenga sistema político que a ditadura nos legou, em que negociatas e favores substituíam as ideias, tidas como "perigosas". Nos gabamos da urna eletrônica (que os EUA e Europa não têm), como se apertar botões ajudasse a distinguir entre o oportunista caçador de voto e o lúcido que, mesmo escasso, resiste ao caos geral. Corremos o risco de, com ou sem plebiscito, outra vez mudar para continuar igual.
Penso na velha aula de jornalismo e me indago se, às vezes, não dá vontade de morder os cães? O que fazer quando a cachorrada late, enlouquecida, e atordoa a todos?

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P.S. - O programa Conexão Roberto d´Ávila deste domingo às 23h30min na TVE, apresenta o diretor do filme "O dia que durou 21 anos", meu filho Camilo Tavares, e eu próprio, que fiz as entrevistas. Na história de como se chegou à ditadura de 1964, o que ali opinamos sobre o Brasil de 2013 segue atual, mesmo gravado ainda antes das manifestações.
*  Jornalista e escritor