domingo, abril 14, 2013

Combate à inflação: a missão impossível - AFFONSO CELSO PASTORE


O Estado de S.Paulo - 14/04

Quando as expectativas de inflação se elevam acima da meta oficial, o Banco Central deveria elevar a taxa real de juros. É isso que faz a inflação retornar à meta. O ajuste não deveria ocorrer de uma única vez, e sim gradualmente, como fazem os bancos centrais de outros países, e como foi o procedimento do Banco Central do Brasil em episódios anteriores de aperto monetário.

Mas quando as autoridades não reagem, contentando-se com argumentos não convincentes de que assistimos apenas a um desvio temporário, estarão dando à sociedade uma prova de maior tolerância a inflações mais altas. A sociedade passa a perceber a existência de uma meta implícita de inflação superior à oficial, caracterizando-se um processo de desancoragem das expectativas. O resultado é o crescimento contínuo da inflação.

Desde o inesperado início do ciclo de queda da taxa Selic, em agosto de 2011, as expectativas vêm excedendo a meta oficial de inflação, e mesmo assim o Banco Central continuou reduzindo os juros. Em agosto de 2011, as autoridades brandiram os resultados de um modelo DSGE, que supostamente lhes daria uma superioridade de informações. O argumento era de que reagiam ao risco de um recrudescimento da recessão mundial, e que o seu modelo DSGE garantiria que a queda da taxa de juros não impediria a convergência para a meta de 4,5% mesmo diante de um choque de 25% do ocorrido quando da quebra do Lehman Brothers. Mas, mesmo dispondo de um DSGE, o Banco Central não conseguiu dimensionar corretamente a queda factível da taxa de juros, exagerando-a. O resultado é que não somente a inflação não convergiu para a meta de 4,5%, como adquiriu uma tendência crescente.

O exagero na queda da taxa de juros mostra que, além da desancoragem das expectativas, a inflação brasileira atual é, também, uma consequência do crescimento da demanda acima do crescimento da oferta. Embora haja um grau elevado de imprecisão nas medidas empíricas da taxa neutra real de juros - a que iguala oferta e procura, estabilizando as taxas de inflação -, há claras indicações de que atualmente a taxa real de juros se situa abaixo da neutra.

Quando isso ocorre, o crescimento da demanda excede o crescimento da oferta e, ainda que o país cresça pouco, ocorre a inflação. Uma evidência desse comportamento vem do mercado de trabalho, no qual a taxa de desemprego é a menor em toda a história, e ao lado disso assistimos ao crescimento da taxa de participação da força de trabalho e dos salários reais, acarretando uma inflação de serviços que há mais de dois anos supera 8% ao ano.

Taxa cambial. Em um quadro como esse, no qual a inflação somente vem sendo precariamente contida pelos baixos reajustes dos preços administrados, o Banco Central já deveria ter iniciado um ciclo de elevação da taxa de juros, e provavelmente terá de fazê-lo em breve. Mas a sua tarefa não será fácil.

A primeira razão prende-se ao comportamento da taxa cambial. Se, a exemplo do ocorrido em episódios anteriores de aperto monetário, a taxa cambial pudesse se valorizar, a política monetária poderia atuar através do canal do câmbio, elevando a sua eficácia no controle da inflação. Mas a valorização cambial esbarra no objetivo de recompor a margem de lucro das indústrias. Contrariamente ao setor de serviços, que não sofre a competição das importações, o setor industrial é mais aberto ao exterior, e não tem a mesma liberdade de repassar aumentos de custos para preços.

Desde o início de 2010, as margens de lucro da indústria vêm caindo continuamente, por causa do aumento do custo unitário do trabalho medido em reais, que é em grande parte uma consequência do superaquecimento do mercado de trabalho. A isto se soma a redução de margens de lucro gerada pelo câmbio, que permanece valorizado apesar da tentativa (frustrada pelo aumento da inflação) de forçar uma depreciação iniciada em maio do ano passado.

Se combinarmos estes dois indicadores em um único - o custo unitário do trabalho medido em dólares -, veremos que a perda de competitividade da indústria brasileira nos últimos anos foi maior do que em qualquer outro país na América Latina. Com isso as margens de lucro da indústria se estreitaram, reduzindo os investimentos, que é uma das causas do baixo crescimento brasileiro atual. O setor industrial somente retomará taxas de investimento mais elevadas se: a) elevar as expectativas de lucros futuros, aumentando suas taxas esperadas de retorno sobre o capital fixo; b) elevar suficientemente os lucros retidos para financiar uma boa parcela de seus investimentos.

Se o superaquecimento do mercado de trabalho pudesse ser revertido, levando à queda do custo unitário do trabalho medido em reais, teríamos uma elevação de margens de lucro, mas politicamente o governo rejeita ações que levem ao aumento do desemprego. Se fosse possível evitar que a inflação erodisse a depreciação do câmbio real, esta levaria a uma recomposição parcial da competitividade. Mas, para que isso ocorresse, a depreciação do câmbio nominal teria de ser acompanhada de um forte aperto das políticas fiscal e monetária, que elevaria a taxa de desemprego, sendo também rejeitada pelo governo. Não há disposição política de pagar os custos necessários para corrigir a penalização que vem sendo imposta à indústria e, nesta situação, torna-se impossível permitir a valorização cambial, que agravaria ainda mais este quadro.

Política fiscal. A segunda razão vem da política fiscal. Se essa política pudesse se tornar contracionista, aliviaria a carga sobre a política monetária. Mas o governo parece acreditar mais no efeito sobre a inflação vindo de desonerações que afetem preços relativos, do que na potência da política monetária. Para isso, vem reduzindo impostos com efeitos temporários sobre a inflação. Porém, em um prazo um pouco mais longo, a queda consequente do superávit primário gera mais inflação, aumentando a carga suportada pela política monetária.

O segundo propósito das desonerações é favorecer os setores produtivos com quedas de custos. Como temos de conviver com os efeitos do elevado custo unitário do trabalho e do câmbio real apreciado sobre o lucro das indústrias, o governo procura compensá-las com desonerações atingindo setores específicos. Por isso a política fiscal torna-se cada vez mais expansionista.

A última razão, e talvez a mais importante, é de natureza política. O reconhecimento de que a popularidade da presidente depende do baixo nível de desemprego levou um ministro de Estado a afirmar que "o PIB do pobre é o emprego e o salário elevado". É isso que está por trás da proposição de que "o combate à inflação não se faz com a redução do crescimento", porque o que se quer preservar é a popularidade vinda do baixo desemprego.

O objetivo da reeleição se sobrepõe a todos os demais. Não há como provar que a relutância do Banco Central em cumprir o seu mandato - o combate à inflação - venha de sua obediência à diretriz de não permitir a elevação da taxa de desemprego. Mas não é necessário que haja qualquer interferência explícita, porque na prática tudo funciona "como se" ela existisse, dado que o Banco Central assiste passivamente ao crescimento da inflação, sem esboçar qualquer reação.

Como é grande o risco de uma desancoragem ainda maior da inflação, é possível que em algum momento o governo decida elevar os juros. Mas, dado o constrangimento de que o crescimento não pode ser afetado, e o canal do câmbio não poder ajudar, o mais provável é que se veja uma elevação cosmética dos juros, visando apenas afetar as expectativas e mostrar que o Banco Central está atuando. Se esta for a motivação, as expectativas permanecerão desancoradas.

Temos um Banco Central extremamente tolerante à inflação, ajustado a um diagnóstico errado e aos objetivos políticos do governo. O próprio governo alimenta a inflação através da política fiscal, que além de permanecer pródiga no aumento dos gastos correntes, vem sendo utilizada para temporariamente "aplainar" elevações de preços. Por isso, combater a inflação no Brasil é, atualmente, uma missão impossível.