O GLOBO - 25/10
O troféu é leve, verde-água, em forma de meia-lua recortada. No primeiro olhar, a gente não entende os recortes na parte interna da meia-lua, até notar que eles desenham o contorno de um perfil: de Vladimir Herzog. O rosto dele não está na parte sólida. Pode-se vê-lo, mas ele não está ali. Num dia 25 de outubro, há 37 anos, o jornalista foi morto no II Exército.
Abeleza delicada e profunda do troféu se deve ao artista plástico Elifas Andreato. Levá-lo para a estante é o sonho da maioria dos jornalistas brasileiros. Na premiação deste ano, havia profissionais de várias partes do Brasil e de várias gerações indo ao palco do Tuca receber o seu, numa festa que mostrava a diversidade que o tema de direitos humanos se desdobra. De índios ameaçados à repressão política no esporte, de meninos de rua aos desaparecidos políticos na ditadura. Histórias emocionantes, que juntas contam como a democracia é uma obra interminável. É preciso sempre avançar.
Aquele 25 de outubro de 1975 é um dia que só pode ser definido com a ajuda de Zuenir Ventura. Um dia que não acabou. No palco do teatro onde também se resistiu à ditadura, a ministra Maria do Rosário e a integrante da Comissão da Verdade Rosa Maria Cardoso entregaram a Clarice Herzog um cartaz que comemora a troca dos documentos oficiais de Herzog. Não mais “asfixia mecânica", que indicava suicídio, e sim morte causada por maus tratos, ou seja, tortura. Dos vários espantos desta história, um é o tempo ser tão elástico. Só 37 anos depois é que se corrige a mentira. Mas a verdade inteira não se tem.
Nem sobre Herzog, nem sobre Rubens Paiva. Os filhos Marcelo Rubens, Vera e Eliana estavam lá e subiram ao palco para entregar o troféu à Globonews pela reportagem
“Uma história inacabada'. Fizemos o máximo que pudemos nos meses da apuração e preparação da reportagem, mas o fato é que ainda não se sabe, 41 anos depois, o que houve naqueles dias de janeiro em que ele desapareceu após ser levado da Terceira Zona Aérea, perto do aeroporto Santos Dumont, para a Polícia do Exército, na Tijuca.
A Comissão da Verdade tem circulado o Brasil esbarrando em histórias incompletas. E as falhas no relato que deixamos para as próximas gerações estão em toda parte. Aos poucos, vão se encontrando peças perdidas, fotos escondidas, fragmentos de um tempo que ainda aflige quem o viveu, e espanta e confunde quem não viveu.
As perguntas que os jovens fazem mostram que ainda há muito a explicar, as perguntas que nós, os mais velhos, carregamos revelam a demora da democracia em investigar os fatos. No livro de Audálio Dantas “As duas guerras de Vlado Herzog", uma das epífrages escolhidas pelo autor é de Carlos Drummond de Andrade: “Mas ainda é tempo de viver e contar. Certas histórias não se perderam.'
Nem podem se perder. Não para remexer em velhas feridas, mas porque da recuperação daqueles fatos é que se fará a história que será entregue às futuras gerações. E elas precisarão saber, por exemplo, do menino judeu Vlado, cujos pais fogem de Banja Luka, na Iugoslávia, em 6 de abril de 1941, invadida pelas tropas de Hitler. O menino e seus pais acabam vindo para o Brasil, onde ele vira o respeitado jornalista Vladimir Herzog, que morre prematuramente, aos 38 anos, naquele 25 de outubro de 1975.
Há tantas emergências no Brasil que alguém pode achar que todas essas histórias deveriam ficar no passado. O problema é que os mortos e os desaparecidos políticos são como o perfil escavado na obra de Elifas Andreato. Estão ausentes, mas podem ser vistos.