domingo, junho 03, 2012

Rasgando a liturgia - GAUDÊNCIO TORQUATO


O Estado de S.Paulo - 03/06



O anúncio de que a presidente da República teria manifestado ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) preocupação com o desdobramento do entrevero Lula-Gilmar Mendes põe no ar a questão: o caso tem potencial para gerar uma crise institucional nas relações entre o Executivo e o Judiciário? A resposta é negativa. Há consenso de que as instituições nacionais devem ser preservadas e as relações entre os Poderes, harmônicas e respeitosas, mesmo sob eventuais abalos que envolvam atitudes ou declarações de seus componentes (ou ex), como este que coloca na arena do embate um ex-presidente da República e um ministro da mais alta Corte, que também já a presidiu. Não significa negar ou mesmo diminuir a gravidade do encontro entre Gilmar Mendes e o ex-presidente, principalmente levando em conta a contundente denúncia de que "chantagistas, bandidos, gângsteres" agem com o objetivo de atrapalhar o julgamento do mensalão, "por meio de informações mentirosas de que a Corte estaria envolvida em corrupção". Mais: Lula seria "a central de informações". É razoável supor que, sob o escudo da vitaliciedade, os membros do STF conservem a altanaria e a independência para ministrar a justiça, não se curvando a eventuais pressões que chegam aos seus ouvidos.

O imbróglio abre um leque de abordagens. A primeira aponta a inconveniência da reunião, marcada por Nelson Jobim, amigo dos dois interlocutores e também ex-ministro da Corte, em seu escritório. Seria ingenuidade imaginar que uma conversa de duas personalidades públicas, sob sigilo, tivesse como foco uma cordial confraternização, ainda mais quando se sabe que um dos participantes, em convalescença, se cerca de cuidados para evitar os "tragos nossos de cada dia", sob o ar esfumaçado de um bom charuto.

A regra de respeito aos contrários, própria ao sistema democrático, comporta contendas no plano do discurso e posições divergentes de contendores. Com essa garantia, o ex-presidente Luiz Inácio investe-se da condição de cidadão com direito a emitir juízos de valor sobre quaisquer matérias e defender causas de seu legítimo interesse nos foros que julgar apropriados. Direito, aliás, revigorado pelo empuxo de uma democracia participativa em expansão, como a que se vê por estas plagas, e desenvolvida pela miríade de organizações que abrem a locução, fazem pressão, batem bumbo nos espaços institucionais, desfraldando bandeiras de todas as cores. Não bastasse, Lula soma à identidade bagagem de monta: ascendeu ao posto mais alto da República saindo das bases da pirâmide social, deixou o governo depois de oito anos aplaudido pelas massas, impregna-se de carisma e continua a ser a principal liderança do partido que ocupa vãos e desvãos do poder central. É compreensível que, sob esse manto, a autoridade carismática de Lula sirva de transporte para um projeto de poder de longo prazo.

O empreendimento que se desenvolve nos laboratórios do PT é o de alongar e alargar os domínios políticos no País para horizontes que ultrapassem a faixa de 20 anos, o que pressupõe fincar estacas profundas no território a partir das municipalidades. Pular de 650 para 1.000 prefeitos é uma das metas na frente de fixação de estacas para este ano. Mas há um rolo compressor que pode atrapalhar os avanços das retroescavadeiras. Foi batizado como mensalão, derivação do termo mensalidade, denunciado em 2005 pelo então deputado Roberto Jefferson para se referir a uma suposta mesada paga a deputados para apoiarem projetos de interesse do Executivo. O então presidente Lula, angustiado, chegou a desabafar na época: "Eu me sinto traído por práticas inaceitáveis. Indignado pelas revelações que chocam o País, e sobre as quais eu não tinha qualquer conhecimento. (...) Não tenho nenhuma vergonha de dizer que nós temos de pedir desculpas. O PT tem de pedir desculpas. O governo, onde errou, precisa pedir desculpas". De 40 denunciados pelo então procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, 37 são réus no STF. Hoje o coordenador político do governismo, Luiz Inácio, se esforça para demonstrar que não houve mensalão. Organiza as estratégias do PT, aplaina caminhos, impõe candidatos às prefeituras, articula acordos, aprova parcerias e faz articulações nas altas esferas.

Dito isto, aflora a questão: o ministro Gilmar Mendes não imaginou que o mensalão poderia ser objeto da conversa? Se pensou que o tema poderia vir à tona, mesmo sob a capa de leve sondagem, por que aceitou o encontro? Ao se deparar com uma abordagem com jeito de pressão e chantagem, como chegou a admitir, por que não deu basta à interlocução e se retirou? Afinal, há uma liturgia do poder que recomenda respeito ao rito, rigidez no protocolo, obediência às normas, defesa dos papéis institucionais. A propósito, faz tempo que por aqui se rasga o manto da liturgia, a começar pelo próprio Lula, que cobrava de Fernando Henrique compostura de ex-presidente, recomendando-lhe recolhimento. Agora esforça-se para elevar a aura carismática, deixando-se embalar em aplausos embriagantes e a acenar para as massas, como a querer dizer: aqui estou eu, mais forte e vivo do que nunca, curado e pronto para abrir novas fronteiras. O perigo mora próximo do líder carismático que se coloca em pé de igualdade com o sagrado. Mais cedo ou mais tarde, o herói se achará tão potente a ponto de querer tomar o lugar de Deus.

Da parte do ministro Mendes, persiste a impressão de que, ao descerem do Olimpo das Cortes para habitar a planície dos simples mortais, magistrados, como ele, podem até vir a ganhar a simpatia social. Atitudes enviesadas diminuem, porém, a taxa reverencial condizente à condição de juiz. O encontro de um alto magistrado e de um ex-presidente da República, para debater questões importantes da vida republicana, deve revestir-se da dignidade que seus perfis recomendam. Sob pena de ambos caírem na vala aberta pelo descrédito.