domingo, maio 13, 2012

Lucia Guimarães Uma trama em que em que terrorismo rima com jornalismo

MnNOVA YORK - Na fictícia província portuguesa de Barba, a fruta que se multiplica por toda parte com sua gosma violeta é a pera peluda. A pera é o ingrediente da popular cerveja Choque, consumida em quantidades épicas no bar O Rato que Late, o centro da intriga política em Cinzeiro, a capital cuja feiura parece ser "resultado de algum esforço". O "vento insano" que varre a região desolada desperta a incredulidade no visitante: por que alguém haveria de querer viver aqui e, mais precisamente, lutar num movimento separatista? O visitante é Edward Kellogg, um advogado nova-iorquino que abandonou a profissão pelo jornalismo, porque decidiu "trocar o desprezo por mim mesmo pelo desprezo pelos outros". Tudo se passa em Barba, fictícia região sul de Portugal
Em Barba, o charmoso líder político do movimento pró-independência, que atende pelo nome de O Creme de Barbear, é Tomás Verdade, um mal disfarçado parente político de Gerry Adams, o líder republicano da Irlanda do Norte.

A incipiente economia local se beneficia da fabricação de souvenirs do grupo terrorista S.O.B. - Soldados Ousados de Barba - que, claro, é assim chamado para evocar a abreviatura do palavrão em inglês. O problema é que o S.O.B é produto da imaginação do correspondente que Edward Kellogg está sucedendo, o corpulento e carismático Barrington Saddler. Depois de transformar a sonolenta província numa causa célebre do terrorismo internacional, Saddler desapareceu sem deixar vestígios. Seu editor, na redação do fictício jornal The Record, em Manhattan, tem que tapar o buraco aberto pelo repórter estrela porque a crise de Barba mantém em Cinzeiro representantes do New York Times, The Guardian, Washington Post e... espere aí... Jornais que recheiam capitais distantes com correspondentes? Ah, faltou explicar que a trama de The New Republic, estrelada por Barba, foi concluída em 1998, uma era geológica anciã em anos-jornalismo.

O décimo primeiro romance de Lionel Shriver saiu há pouco nos Estados Unidos depois de uma hibernação de 14 anos. O anterior, Tempo É Dinheiro (leia abaixo), chega às livrarias do Brasil pela Editora Intrínseca no dia 21.

A escritora toca a campainha numa tarde de sábado. Pergunto onde está sua bicicleta, a que estacionou na minha sala, num outro sábado, num outro ano. A bicicleta está acorrentada ao poste na calçada, ela explica, tirando a jaqueta de couro que engolia sua figura diminuta.

A ideia da entrevista em domicílio não foi minha. A romancista best-seller, autora de Precisamos Falar Sobre o Kevin e O Mundo Pós-Aniversário, tinha um jantar com os pais em Manhattan, a poucos quarteirões do meu endereço. Quantas mulheres de 55 anos haveriam de pedalar mais de uma hora no impiedoso tráfego entre o Brooklyn, onde ela passa poucos meses por ano - o resto do tempo, mora em Londres - e Manhattan, para ir a um jantar? Quem já a entrevistou antes, acha por bem não fazer a pergunta para esta autora que claramente detesta banalidades.

Como iria me lembrar na hora seguinte, Lionel Shriver conta jornalistas, mas não esta repórter, entre seus melhores amigos. É voraz consumidora de jornais, uma "news junkie", em suas palavras. Contribui para várias publicações e teme viver num mundo em que a existência do New York Times possa ser ameaçada. O que não a impede de estar furiosa com a crítica literária Michiko Kakutani, do Times nova-iorquino. Depois de regalar com elogios dois romances anteriores da autora, a crítica que os escritores americanos mais gostam de atacar ("a mulher mais estúpida de Nova York", decretou um chamuscado Jonathan Franzen, em 2008) concentrou sua artilharia ferina em The New Republic. A crítica acusou Shriver de tratar o terrorismo como trivialidade. Um bastidor importante sobre o romance: ele foi concluído e deixado de lado quando Shriver morava em Belfast e era relativamente desconhecida.

"Minhas vendas eram venenosas", diz ela na introdução do livro. "Meus compatriotas consideravam o terrorismo o Problema Entediante dos Estrangeiros." Depois de tirar o manuscrito da gaveta e mostrar ao marido, Shriver concluiu que o tabu do 11 de setembro - a noção de que humor e ironia não podem ser aplicados a esta tragédia contemporânea - já tinha sido aposentado.

Os 12 anos passados na Belfast sacudida por atentados serviram de inspiração para a obra, lembra a autora. "Eu sentia raiva de ver como o terrorismo trazia recompensas - no caso, para o Exército Republicano Irlandês. Era nojento conviver com aquela realidade. Quando você testemunha de perto, deixa de ser abstrato." Ela reconhece que, a distância, os "republicanos" liderados por Gerry Adams pareciam libertadores. "Mas quando eu morava lá, havia muito tempo que a causa tinha deixado de ser uma luta de direitos civis. Tinha se tornado uma causa nacionalista de direita. Eles eram uns bullies profissionais."

Em The Bleeding Heart (1990), Shriver já havia plantado a trama de um romance na Irlanda do Norte e decidiu depois tratar o terrorismo como farsa. Os diálogos do novo livro são recheados de palavras de ordem e lugares-comuns que parecem formar uma língua franca da militância. O niilismo dos personagens é típico da violência burocratizada.

A autora concluiu também, morando em Belfast, que a imprensa se torna aliada involuntária de militantes, já que a cobertura da violência tende a ser amplificada - mas deixa claro que não defende nenhum tipo de censura. "Assim me ocorreu a premissa para The New Republic", lembra. "Uma organização fictícia assume a responsabilidade por atentados em outros países, a imprensa compra a mentira e uma facção adquire poder político."

E por que o pacífico Portugal? Shriver não fala português e só visitou o país, que considera "agradável e charmoso", como turista. Mas um dia, em casa, ela começou a desenhar uma península - Barba - ao sul de Portugal e inventou o lugar para onde o bombástico repórter Barrington Saddler é enviado como punição porque nada acontece lá, um problema que ele decide resolver por conta própria, inventando um movimento de independência prontamente apoiado por políticos oportunistas.

O outro tema de seu novo livro é o carisma. O protagonista Edward Kellog é um inseguro - "Eu sou um segundo colocado na vida", diz, a certa altura - que foi obeso e rejeitado na juventude e sempre se fixou em personalidades magnéticas, nos primeiros colocados da vida. O dilema de Kellogg, aderir ou não à farsa criada pelo antecessor carismático e amoral, é exposto para o julgamento do leitor. Mas Shriver admite que se atrai pelas circunstâncias negativas que motivam seus personagens. The New Republic, ela diz, é um "boy book", um livro narrado na perspectiva masculina, que ela considerou ideal para seu elenco de valentões e contadores de bravatas.

A rotina dos jornalistas isolados na imaginária província portuguesa e em constante torpor etílico num bar localizado na "Rua da Evaporação", apesar de ser pré-internet, é relatada com detalhes que vão ser reconhecidos por quem pratica o ofício. Lá estão as relações pessoais e profissionais incestuosas, o temor da irrelevância, os egos feridos. "Ele é tudo o que dá reputação ruim a jornalistas: arrogante, irresponsável e impreciso", afirma um repórter sobre um colega. "E ele pensa que é mais importante do que a história." Apesar do sarcasmo na narrativa, o afeto de Shriver pela profissão sobrevive intacto.

A reação indignada de alguns críticos surpreendeu a autora. "Não há meio-termo, as pessoas gostam ou detestam. É um romance político", diz. Mas ela se queixa de falta de senso de humor nas reações negativas. Não é a primeira vez que Lionel Shriver insere humor em tragédias como massacres em escolas (Precisamos Falar Sobre o Kevin) e doenças graves (Tempo É Dinheiro). Nem é a primeira vez que a escritora detecta a direção do vento, produzindo ficção com a realidade urgente, como fez nos mesmos romances. A decisão de publicar The New Republic quase sem alterações e com uma referência de passagem ao 11 de setembro, veio em parte porque ela queria crédito por ter tratado do terrorismo e também do sentimento anti-islâmico quando os temas faziam os americanos bocejar. "Alguém perguntou se eu inseri alguma revisão na trama para parecer premonitória. Não, já estava tudo lá, eu observava a tensão com a imigração muçulmana na Europa", diz.

A autora, que se considera "até um pouco conservadora" em assuntos econômicos, perde o senso de humor ao acompanhar a campanha presidencial americana. "Acho assustador ver que um dos principais partidos é uma piada. Eu acho importante haver outro partido além do Democrata. Mas não existe este partido, ele foi sequestrado por lunáticos, não dá para votar neles", conclui.

Ela continuará a provocar no próximo romance, recém-concluído e previsto para sair em 2013, cujo título provisório é Big Brother: "É sobre a obesidade. Ainda não sei bem como vai ofender as pessoas." A figura esguia à minha frente nem espera a próxima pergunta. "Eu sempre fui magra, mas perdi um irmão por complicações com a obesidade. E este fato me influenciou para tratar do tema", explica.

Lionel Shriver, a voraz leitora de jornais, pode ser acusada de ignorar sensibilidades, mas sabe tomar o pulso do tempo em que vive.

THE NEW REPUBLIC

Autora: Lionel Shriver

Editora: Harper

(Importado, 378 págs., R$ 66,10)

Tudo se passa em Barba, fictícia região do sul de Portugal, onde um correspondente inventa um grupo separatista