quinta-feira, abril 12, 2012

Felicidade sim Cora Ronai











Todos escreveram como ele era grande, imenso mesmo – e é verdade.  Ninguém pensava tão rápido, ninguém conseguia ver tão claramente o avesso das coisas, os absurdos do cotidiano, as incongruências que a nós, mais lentos de idéias, pareciam verdades esculpidas em pedra. Era o melhor em tudo o que fazia. Tinha talento, originalidade e uma capacidade de trabalho espantosa; tinha ferocidade também, e uma coragem intelectual quase suicida. Ao mesmo tempo, sabia ser o amigo mais terno e generoso, mas penso que seria um semideus insuportável se todas essas qualidades não fossem temperadas por pequenos defeitos que o tornavam humano e, portanto, mais próximo de nós. Ainda assim, me pergunto o quanto desses defeitos era real, e o quanto era cenográfico. Tinha um medo cômico de baratas, por exemplo, do qual fui vítima algumas vezes: na rua, sua reação instintiva diante das repulsivas era chutá-las o mais longe possível, sem olhar a direção – que, volta e meia, calhava de ser o meu pé. Sei lidar com uma quantidade de bichos e de insetos, mas baratas não estão entre eles. Com o tempo, aprendi a me posicionar fora da linha do gol, mas nunca deixei de achar engraçado aquele gigante moral apavorado por tão pouco. Passado o susto acabávamos rindo; tenho certeza de que ele também percebia a ironia da situação.
Uma tarde estávamos no estúdio quando a mãe de todas as baratas entrou pela janela. Teresa, a valente administradora do espaço, já tinha ido embora. Aquele era um problema que teríamos de resolver sozinhos. Depois de uma cena digna do pior pastelão, conseguimos levar a cascuda a nocaute. Ela agonizou de costas no chão da cozinha durante um bom tempo. Nenhum de nós dois teve coragem de abreviar seu sofrimento. Quando finalmente ficou imóvel, fui buscar vassoura e pá, mas ele me impediu: era preciso que a Teresa visse do que éramos capazes. No dia seguinte a Teresa chegou, viu a barata morta na cozinha, varreu para o lixo e foi cuidar da vida. Ela nunca soube do nosso ato de bravura porque ele era orgulhoso demais para abrir certos flancos; mas poucas vezes o vi tão desapontado.
Ratos, biológicos e metafóricos, também não contavam com a sua estima. Houve um tempo, lá pelos anos 80, em que Walmor Chagas ficou muito entusiasmado com a possibilidade de fazer teatro de massa. Não tinhamos idéia do que seria aquilo, mas o Walmor tinha, e dizia que  o melhor exemplo estava em Pernambuco, num teatro ao ar livre chamado Nova Jerusalém, a 200 quilômetros de Recife, onde gente vinda de toda a região encenava uma Paixão de Cristo monumental. Era coisa extraordinária, que precisava ser vista. De modo que, capitaneados por ele e por Wolf Maya, fomos ver o espetáculo.
Naquela época, as instalações para quem vinha de fora ainda eram muito precárias. Conseguimos dois quartos numa fazenda, construções modestas um pouco afastadas da casa central, revestidas de chapisco, com pouco mais do que uma cama e um chuveiro. Tomamos posse dos nossos domínios e saímos, já atrasados para a encenação. Deixamos a janela aberta mas, como ainda era dia claro, não percebemos que a luz havia ficado acesa.
Quando voltamos, horas depois, nosso quarto, um dos poucos pontos brilhantes na noite escura, era o paraíso dos entomologistas. Centenas de  insetos faziam a festa em torno da lâmpada nua que pendia do teto; a cama fervilhava com besouros caídos de costas, vespas torradas pela dita lâmpada, mariposas tontas. Fiquei extasiada com a variedade, mas Millôr não compartilhava do meu entusiasmo pela vida silvestre.
– Olha aquele coleóptero brilhante, que coisa linda! E aquele serra-pau enorme, olha, olha! E aquela mariposa com o desenho na asa! Que bonitinho, duas lagartixinhas na parede…
– E da ratazana, você não diz nada?
Pois: logo ali, tranquilamente subindo pelo chapisco, havia um rato. Grande, cinza, de rabo pelado.
Mais rápido do que o raio, mais veloz do que o trovão, Millôr zuniu para o banheiro, e lá se trancou. Eu voei porta afora e dei um berro. Adoro insetos e tenho o maior carinho por lagartixas, mas, como as baratas, ratazanas também não gozam da minha simpatia. Walmor e Wolf acudiram, constataram a presença asquerosa e prudentemente ficaram do lado de fora, me dando apoio espiritual. Logo depois chegou a dona da fazenda, que não entendeu o motivo do fuzuê. Claro que havia um rato. O mundo está cheio de ratos. E, antes de cuidar dele, deu umas vassouradas nas lagartixas.
– Não mata as lagartixas não! – gritei angustiada. — Elas não fazem mal a ninguém!
A vassoura espadanava para cá e para lá, levantando nuvens de insetos das paredes. Finalmente acertou o rato, que caiu no chão meio tonto e logo tomou uma bordoada.
– Não faz isso, não mata ele aqui dentro não! – exclamei, apavorada diante da perspectiva de dormir ao lado de uma poça de suco de rato.
O Millôr, que durante toda a ação havia permanecido valentemente mudo e trancado no banheiro, não se conteve, e gritou lá de dentro:
– Mata! Mata! Mata! Isso não é hora de fazer ecologia!
o O o
Gosto dessas lembranças miúdas, dessas histórias pequenas, desse Millôr que, por cortesia para com os demais, às vezes fazia de conta que não era o superhomem que nós sabíamos. A foto desta crônica foi a última que fiz dele. Fernanda veio comer conosco, e o almoço se estendeu pela tarde. Ele estava sereno e feliz, contente com o ato singelo de conversar em torno da mesa. Poucos dias depois, teve o AVC que o levaria de nós.
(O Globo, Segundo Caderno, 12.4.2012)