sexta-feira, abril 20, 2012

As paredes caem, uma a uma, em Pinheiros - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO




O Estado de S.Paulo - 20/04/12


Quando cheguei a esta rua, João Moura, havia em frente do meu prédio uma vilazinha e nela uma fonte de água cristalina. Dizia-me seu Chico, com seus 80 anos, que a fonte existia desde que ele chegara, na altura dos anos 1930. E que muita gente ia buscar água fresca para encher talhas, potes e moringas.

Chico, meu vizinho, tinha um quintal que ia até quase a Rua Cristiano Viana. Nele coexistiam jabuticabeiras, bananeiras, pássaros, patos, galinhas. As jabuticabas, imensas, eram docíssimas.

Cada vez que o pé carregava e os galhos pretejavam de frutos, Chico me trazia uma vasilha cheia. Havia um tanto de interior, um tanto de bucolismo, outro de quietude, comunidade.

Chico se foi, mas sua casa, seu terreno ainda estão ali e cada um de nós prende a respiração, no temor de que vendam algum dia e tudo vá para o chão.

O galo garnizé que a vizinhança ouve habita esse terreno. Vez ou outra, acontece uma baladinha noturna, com violão e danças, há pessoas guardando a casa. Um citadino dia desses começou a espicaçar a galinha que tinha acabado de ter pintinhos.

Provocava e provocava a pobre ave que tentava proteger os filhotes e investia com o bico. Então, um dos convidados gritou:

- Pare com isso, por favor! Não perturbe! Não vê que a galinha ainda está amamentando?

Quando cheguei à rua, anos 90, do meu apartamento no 13.º andar minha vista alcançava o horizonte e eu podia ver as luzes do Morumbi, em noites de jogo. Ao fazer uma panorâmica, contemplava o verde por toda a parte.

Abaixo de mim podia contemplar os sobrados tão característicos de Pinheiros e Vila Madalena, cada um com seu quintal, suas árvores. Podia ver laranjeiras. Mangueiras e jabuticabeiras, flores.

Assim vinha sendo nossa vidinha com jeito provinciano, aqui em Pinheiros, dentro de São Paulo. Basta atravessar uma rua e estamos nos Jardins. Mas em geral ficamos no que chamamos o outro lado da Rebouças, o nosso.

Tão bom que as casas de decoração estão ocupando espaços, são várias e dá gosto olhar as vitrines. Uma delas, a do Teo, inclusive, reformou uma área imensa em frente da nova churrascaria Bovinu's, que, após quase um ano, abriu suas portas.

Nessa onda, na Rua Artur de Azevedo, a filha do Viana mudou o rumo dos negócios que eram do pai (materiais de construção) e agora o espaço se chama Vianarte, com objetos coloridos.

Jovens saem do cursinho e da faculdade (tudo aqui na rua) e lotam o bar do Pinguim e o novo boteco Leyseca na esquina da Artur de Azevedo. Há um tom alegre nos fins de tarde, ruidoso, agitado. Na CPL motoqueiros fazem point aos sábados.

Aqui temos nossos bares, nossos restaurantinhos, o Genova, o Buttina, o bistrô Vianna, o Wolf, nossos self-services, a padaria, o sapateiro, a quitanda, a farmácia, o supermercadinho, a acupuntura.

Os prédios existentes conviviam em harmonia com os sobrados, as lojas, com tudo, todos se ajeitando, se acomodando, amigavelmente. Uns prédios maiores, outros pequenos, de quatro, cinco andares.

Então, começaram a chegar. Ah, começaram! Em frente de casa subiram duas torres enormes, minha vista se foi, a fontezinha desapareceu no concreto. Sim, um dia reapareceu dentro da garagem de nosso prédio. Quem segura água?

A vilinha que havia desapareceu. Foi o primeiro aviso. O segundo foi na Rua Artur de Azevedo, quando um grupo de casinhas foi abaixo, entre elas a original videolocadora S'Different, um barzinho de happy hour e duas ou três residências.

As "bombas" caíam cada vez mais perto. Então, a notícia se espalhou: tudo viria abaixo na esquina da João Moura com a Teodoro Sampaio. Até a belíssima casa branca que ficava no alto de uma colina.

Histórica? Não sabíamos. Mas era linda, de uma São Paulo senhorial, elegante. Todos tremeram quando a proprietária, velhinha, morreu. Dali saiu seu funeral por determinação expressa. Ficamos todos na corda bamba.

Súbito, na calada da noite, porque eles não têm coragem, fazem na calada da noite, a casa desapareceu. Foi ao chão, como se tivesse passado um tsunami. A arte de demolir num instante tem seu auge em São Paulo.

A morte da casa branca da colina verde doeu em todos nós. Ali, dizem, vai ser um shopping. Na Artur, um grande complexo. A culpa é de quem, gente? Das construtoras? Não, elas querem construir. A culpa é de leis que cedem ante o poder do dinheiro sem medir consequências para a comunidade, o trânsito, a rede de águas e esgotos, e tudo que está implicado.

E as árvores do jardim? Vão para o chão? (Aliás, ali na esquina da Brasil com a Colômbia, a Kia não derrubou a imensa árvore, frondosa, para construir uma concessionária?) E como fazer, se ao lado da ex-casa branca da João Moura há um posto de gasolina? Terreno contaminado. Não existe um prazo de alguns anos para limpar tudo? Vão cumprir? Vão nada.

Junto da escola, outro edifício está subindo. Sobem, sobem, vão subir, e o bairro vai sendo desfigurado. Aliás, toda esta cidade foi, está sendo e será. Não existem planos diretores, nem políticos que se interessem por esta pobre São Paulo.

Assinei, vou participar, estou com o Movimento Contra a Verticalização. Não somos contra o progresso, somos contra as injúrias, a agressão à qualidade de nossas vidas, a entrega de tudo à especulação.

Vivi quase 20 anos nesta comunidade, faço parte dela, nos conhecemos todos, temos nossos hábitos e idiossincrasias, alegrias. Agora, temos medo, muito medo de que talvez tenhamos de procurar outro lugar para viver.

Eros Grau, que foi ministro do Supremo, é poeta, romancista, com expressiva bibliografia jurídica e membro da Academia Paulista de Letras, em seu mais recente livro, Paris, Quartier Saint-Germain, ao testemunhar a ação do "modernismo" que vem devastando edifícios, livrarias, pontos tradicionais em Paris, indaga:

"...E os seres humanos que davam vida a todas essas coisas? Onde está, para onde foi toda essa gente que integrava meu universo afetivo? Que diabo de método de produção social desagradável, sempre assumindo formas novas, engolindo o passado e os que faziam parte dele! Eles não percebem - os sujeitos da transformação econômica - que agridem bruscamente a nossa intimidade afetiva quando renovam o quartier e o mundo?"