terça-feira, março 20, 2012

Momento tenso - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 20/03/12

A proximidade da instalação da Comissão da Verdade está mexendo com os
ânimos tanto dos militantes de esquerda quanto dos militares, enquanto
a presidente Dilma não revela sua composição. Pelos nomes escolhidos,
saberemos qual é a intenção do governo. Por enquanto, temos posições
distintas dentro do mesmo governo, o que certamente está causando essa
insegurança sobre o futuro.

A posição do advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, deveria ser a
do governo, e ele já dera entrevista classificando de "inadequadas" as
ações do Ministério Público Federal do Pará tentando contornar a Lei
de Anistia para incriminar o coronel Curió no chamado "crime
continuado", que estaria fora da abrangência daquela lei.

A tese de que os desaparecimentos de guerrilheiros do Araguaia seriam
sequestros ainda em andamento foi rejeitada tanto pela AGU quanto pelo
juiz federal João César Otoni de Matos, de Marabá, pelas mesmas
razões: viola o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei
da Anistia, promulgada em momento de conciliação nacional.

"Pretender, depois de mais de três décadas, esquivar-se da Lei da
Anistia para reabrir a discussão sobre crimes praticados no período da
ditadura militar é equívoco que, além de desprovido de suporte legal,
desconsidera as circunstâncias históricas que, num grande esforço de
reconciliação nacional, levaram à sua edição", disse o juiz João César
Matos.

Desse ponto de vista, quem está desviada da posição do governo federal
e, sobretudo, da lei seria a ministra da Secretaria dos Direitos
Humanos, Maria do Rosário, que deu entrevistas incentivando a ação do
Ministério Público Federal.

Mas suas declarações não foram desautorizadas por ninguém de direito e
geraram uma crise militar que só será resolvida se for esquecida.

Os manifestos de militares com críticas ao governo começaram como
coisas de militares da reserva e se transformaram em abaixo-assinados
de milhares de pessoas, civis e militares, em protesto contra a ameaça
de punição para seus apoiadores.

Embora os militares da reserva tenham o direito de atuação política e
de expressar seus pontos de vistas, eles podem ser punidos se
desrespeitarem a hierarquia, como foi interpretado pelo Palácio do
Planalto e pelo Ministério da Defesa.

Eu mesmo cometi um erro ao afirmar em um comentário na rádio CBN que
os militares haviam passado do ponto quando não reconheceram a
autoridade do ministro Celso Amorim.

Mas esse desconhecimento não se referia ao seu papel como ministro da
Defesa, e sim à sua decisão de punir os assinantes do manifesto.

Dizer que sequestros da ditadura são crimes continuados é tentar
contornar a Lei da Anistia. Embora possa ser uma tentativa
compreensível de parentes e amigos de incriminar eventuais culpados
por torturas e outros crimes, não deveria ser a atitude de
procuradores afrontar a legislação vigente.

O assunto terá que voltar ao Supremo Tribunal Federal (STF), que vai
analisar a Lei da Anistia novamente, desta vez sob a ótica dos
chamados "crimes continuados", pois a OAB insiste em que o STF não se
pronunciou especificamente sobre essa questão.

O leitor Paulo Augusto Silva Novaes lembra que há ainda a
possibilidade de enquadrar os supostos sequestradores no crime de
ocultação de cadáver.

Justamente por ser presumida a morte dos então chamados subversivos
(presunção iuris tantum, por depender de prova em contrário) é que o
crime de ocultação de cadáveres pode ser tecnicamente interpretado
como estando ainda em curso.

Se Curió se livrasse da acusação de sequestro, caso confessasse que
matou os guerrilheiros do Araguaia (e não poderia ser processado,
julgado e punido por isso porque está protegido pela Anistia), ele
ainda estaria sujeito à acusação do crime de ocultação de cadáveres,
já que até hoje não disse quando, onde e como foram mortos os
guerrilheiros, e nem onde os seus corpos foram deixados ou enterrados.

Trata-se de um típica hipótese de crime permanente, portanto. Se o STF
aceitar a tese da OAB, a decisão tem que ser acatada.

A pressão de organismos internacionais ligados até mesmo à Organização
das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA)
para que o governo brasileiro aceite julgar crimes de torturas por
serem crimes hediondos, contra a Humanidade, não deve prosperar porque
a Constituição brasileira de 1988 também considera "imprescritíveis"
crimes como a tortura e o terrorismo, mas essa definição não existia
quando da promulgação da Lei da Anistia, em 1979.

Mas, na minha opinião, será muito difícil que os ministros do Supremo
aceitem a ideia e permitam o julgamento de questões como os
desaparecimentos ocorridos na luta armada contra a ditadura.

Já escrevi no blog e repito que, no momento em que o governo se
prepara para anunciar os componentes da Comissão da Verdade, seria
preciso que as autoridades ligadas a questões como os direitos humanos
ou as que envolvem os militares tivessem uma posição menos
radicalizada, para que a comissão possa fazer seu trabalho dentro da
legislação em vigor e sem revanchismos.

Localizar os corpos dos desaparecidos, para que suas famílias exerçam
o sagrado direito de enterrá-los, e esclarecer as circunstâncias em
que os fatos ocorreram devem ser o objetivo da Comissão da Verdade.

Mas a questão judicial, no que se refere ao aspecto criminal, está
superada pela Lei da Anistia.