Linha 162 para o inferno - Guilherme Fiúza
O Globo 03/03/2012
Bem que avisaram que o mundo ia acabar em 2012. Acabou mesmo. Só não dava para imaginar que seria logo em fevereiro. Uma menina de 12 anos foi estuprada dentro de um ônibus no Jardim Botânico. A cidade até notou, mas seguiu em frente. Era carnaval. O crime saiu na urina dos foliões bêbados. A curra da colegial ao meio-dia não bombou no Twitter, não mobilizou os defensores da cidadania, não rendeu passeata, nem mesmo protesto cenográfico na Praia de Copacabana para sair no jornal. Não gerou gritos de indignação das autoridades (sinceros ou não), não deflagrou nenhum debate público relevante sobre segurança, ou sobre civilização, ou sobre barbárie. No noticiário morno, nenhum sinal de sociedade ultrajada. Não restam dúvidas: o mundo acabou. E a culpa é dessa menina descuidada, que fica dando sopa por aí. Onde já se viu uma pré-adolescente sair da escola e embarcar num ônibus da linha 162, Glória-Leblon, cruzando a Zona Sul do Rio de Janeiro na hora do almoço de uma quarta-feira, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo? O que mais poderia o destino reservar a uma estudante uniformizada que se desloca pela Rua Jardim Botânico, ao meio-dia, com a sórdida fantasia de chegar impunemente em casa? O que ela não contava era com a lucidez do estuprador. Esse, sim, sabe por onde anda. Em perfeita sintonia com o seu tempo, o facínora intuiu que não seria ousado demais obrigar uma menina a tirar a roupa dentro de um ônibus, à luz do dia, numa das áreas mais nobres da cidade, e abusar dela ali mesmo. Algo lhe dizia que o terreno era seguro. O crime foi consumado sem atrapalhar o tráfego. Diante da notícia, a opinião pública deu uma olhadinha pela janela e acelerou em frente. A cidade não parou - nem para olhar, nem para pensar. Sociologicamente, o bandido sabia onde estava pisando. E a vida teria que parar diante dessa atrocidade? As vozes progressistas e igualitárias já explicaram que não: "Isso acontece toda hora na periferia, só que a gente não fica sabendo." Assunto encerrado. Enquanto a vida for aviltada na periferia, a Zona Sul que não venha com reclamação elitista. Se o estupro é inevitável, só haverá justiça social quando ele estiver democratizado. (O caso do ônibus 162 ainda há de virar filme, com a humanização do estuprador). Capital ecológica em 2012, tema de filme em Hollywood, palco central da Copa em 2014 e cidade olímpica em 2016, o Rio de Janeiro está uma graça com essa aura futurista e corpinho de Idade Média. Os festejos, especialidade da casa, têm produzido sucessos bestiais. O carnaval que atropelou o ônibus 162 mostrou que a alegria carioca não está de brincadeira. Em conluio com as autoridades, centenas de blocos sequestram a cidade por uns 15 dias (4 dias dizia a sua avó), numa espécie de AI-5 momesco. A suspensão do direito de ir e vir, ponto central desse regime de exceção, não prevê habeas corpus para grávidas, cardíacos e emergências em geral. É um exército com mais de 5 milhões de membros estrategicamente distribuídos no tempo e no espaço, marchando em variados horários e direções, aniquilando a ideia subversiva de vida normal. Além da arma biológica esguichada sobre canteiros e calçadas, o odor é reforçado por despejos orgânicos e inorgânicos, poderosa arma química que potencializa a tortura do bombardeio sonoro. O exército da alegria eventualmente depreda e saqueia o que vê pela frente, ações também amparadas pelo Ato Institucional do Carnaval. A ofensiva em 2012 superou em todos os indicadores a de 2011, e as projeções indicam que em 2013 será ainda mais legal (ou letal). Ninguém segura esta cidade. Não se sabe onde vai parar essa escalada de paz e irreverência até 2016, com todos os megaeventos e seus sucessos bestiais na agenda. O que se sabe é que o orgulho carioca virou uma questão aritmética. O ufanismo emana da aglomeração. A apoteose pacifista é um evento onde dois milhões de pessoas se espremem na Praia de Copacabana, grande parte delas passando horas prisioneiras de alguns centímetros quadrados - com um cotovelo alheio enterrado em cada costela e o suor a todos irmanando. Assim como a asfixia do Ano Novo, já se tornou tradicional o engarrafamento do Natal. A aglomeração de fraternidade em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas para ver uma árvore piscando dá um nó na Zona Sul, e enche o carioca de orgulho. Um gaiato que falou na internet sobre esse "espírito farofeiro" só faltou ser acusado de nazista pelos defensores da cidadania e dos direitos humanos. O humanismo dos cariocas e dos brasileiros está fortemente presente em qualquer oba-oba de verão. Mas não anda de ônibus 162. Vem aí a Comissão da Verdade para exumar os crimes da ditadura. A família da menina de 12 anos barbarizada ao sol da democracia não tem por que acreditar nisso. Para ela, o mundo dos direitos humanos acabou no mês passado. Para a menina barbarizada, o mundo dos direitos humanos acabou em fevereiro Bem que avisaram que o mundo ia acabar em 2012. Acabou mesmo. Só não dava para imaginar que seria logo em fevereiro. Uma menina de 12 anos foi estuprada dentro de um ônibus no Jardim Botânico. A cidade até notou, mas seguiu em frente. Era carnaval. O crime saiu na urina dos foliões bêbados. A curra da colegial ao meio-dia não bombou no Twitter, não mobilizou os defensores da cidadania, não rendeu passeata, nem mesmo protesto cenográfico na Praia de Copacabana para sair no jornal. Não gerou gritos de indignação das autoridades (sinceros ou não), não deflagrou nenhum debate público relevante sobre segurança, ou sobre civilização, ou sobre barbárie. No noticiário morno, nenhum sinal de sociedade ultrajada. Não restam dúvidas: o mundo acabou. E a culpa é dessa menina descuidada, que fica dando sopa por aí. Onde já se viu uma pré-adolescente sair da escola e embarcar num ônibus da linha 162, Glória-Leblon, cruzando a Zona Sul do Rio de Janeiro na hora do almoço de uma quarta-feira, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo? O que mais poderia o destino reservar a uma estudante uniformizada que se desloca pela Rua Jardim Botânico, ao meio-dia, com a sórdida fantasia de chegar impunemente em casa? O que ela não contava era com a lucidez do estuprador. Esse, sim, sabe por onde anda. Em perfeita sintonia com o seu tempo, o facínora intuiu que não seria ousado demais obrigar uma menina a tirar a roupa dentro de um ônibus, à luz do dia, numa das áreas mais nobres da cidade, e abusar dela ali mesmo. Algo lhe dizia que o terreno era seguro. O crime foi consumado sem atrapalhar o tráfego. Diante da notícia, a opinião pública deu uma olhadinha pela janela e acelerou em frente. A cidade não parou - nem para olhar, nem para pensar. Sociologicamente, o bandido sabia onde estava pisando. E a vida teria que parar diante dessa atrocidade? As vozes progressistas e igualitárias já explicaram que não: "Isso acontece toda hora na periferia, só que a gente não fica sabendo." Assunto encerrado. Enquanto a vida for aviltada na periferia, a Zona Sul que não venha com reclamação elitista. Se o estupro é inevitável, só haverá justiça social quando ele estiver democratizado. (O caso do ônibus 162 ainda há de virar filme, com a humanização do estuprador). Capital ecológica em 2012, tema de filme em Hollywood, palco central da Copa em 2014 e cidade olímpica em 2016, o Rio de Janeiro está uma graça com essa aura futurista e corpinho de Idade Média. Os festejos, especialidade da casa, têm produzido sucessos bestiais. O carnaval que atropelou o ônibus 162 mostrou que a alegria carioca não está de brincadeira. Em conluio com as autoridades, centenas de blocos sequestram a cidade por uns 15 dias (4 dias dizia a sua avó), numa espécie de AI-5 momesco. A suspensão do direito de ir e vir, ponto central desse regime de exceção, não prevê habeas corpus para grávidas, cardíacos e emergências em geral. É um exército com mais de 5 milhões de membros estrategicamente distribuídos no tempo e no espaço, marchando em variados horários e direções, aniquilando a ideia subversiva de vida normal. Além da arma biológica esguichada sobre canteiros e calçadas, o odor é reforçado por despejos orgânicos e inorgânicos, poderosa arma química que potencializa a tortura do bombardeio sonoro. O exército da alegria eventualmente depreda e saqueia o que vê pela frente, ações também amparadas pelo Ato Institucional do Carnaval. A ofensiva em 2012 superou em todos os indicadores a de 2011, e as projeções indicam que em 2013 será ainda mais legal (ou letal). Ninguém segura esta cidade. Não se sabe onde vai parar essa escalada de paz e irreverência até 2016, com todos os megaeventos e seus sucessos bestiais na agenda. O que se sabe é que o orgulho carioca virou uma questão aritmética. O ufanismo emana da aglomeração. A apoteose pacifista é um evento onde dois milhões de pessoas se espremem na Praia de Copacabana, grande parte delas passando horas prisioneiras de alguns centímetros quadrados - com um cotovelo alheio enterrado em cada costela e o suor a todos irmanando. Assim como a asfixia do Ano Novo, já se tornou tradicional o engarrafamento do Natal. A aglomeração de fraternidade em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas para ver uma árvore piscando dá um nó na Zona Sul, e enche o carioca de orgulho. Um gaiato que falou na internet sobre esse "espírito farofeiro" só faltou ser acusado de nazista pelos defensores da cidadania e dos direitos humanos. O humanismo dos cariocas e dos brasileiros está fortemente presente em qualquer oba-oba de verão. Mas não anda de ônibus 162. Vem aí a Comissão da Verdade para exumar os crimes da ditadura. A família da menina de 12 anos barbarizada ao sol da democracia não tem por que acreditar nisso. Para ela, o mundo dos direitos humanos acabou no mês passado. Para a menina barbarizada, o mundo dos direitos humanos acabou em fevereiro