Com um certo embaraço para quem é tido, generosa e erroneamente, como
conhecedor do que agora ouço chamarem de "Brasil profundo", não
entendo praticamente nada de jogo do bicho. É uma ignorância
vergonhosa e até mesmo, em algumas ocasiões, fator de exclusão social,
porque fico inteiramente por fora de várias conversas. Sei que 24 é
veado, porque sou do tempo em que os estudantes cujos primeiros nomes
começavam com letras do meio do alfabeto corriam o risco, a depender
do tamanho das turmas, de pegar o número 24 e passar o ano inteiro
ouvindo piadinhas na hora da chamada. Em Sergipe, saía porrada. E
também sei que 34, aliás número de minha cadeira na Academia, é duas
cobras, porque sonhei com duas colegas de faculdade, contei a elas e
elas, para quem eu de vez em quando fazia um joguinho, pois que eram
tempos em que as moças não podiam expor-se a certos ambientes, me
aconselharam entre risos que eu jogasse em duas cobras. Dito e feito,
ganhei na dezena, comemoramos na cantina, com três coca-colas e três
pastéis.
Depois disso, nunca mais joguei. Aliás, minto. Quando eu morava na
Bahia, passava temporadas no Rio. Durante uma dessas, no restaurante
em que me enturmei, éramos visitados desde as 11 da manhã, pela tarde
adentro, por um simpático e sorridente cambista - ou pelo menos acho
que era o nome que se dava - que levava as apostas à casa de jogo do
bicho (de novo, não sei se é este o nome usado para a porta do
estabelecimento onde se fazia a fezinha diretamente; na Bahia era
"tenda do bicho"). De vez em quando eu jogava e uma vez, assessorado
por um companheiro de mesa, cerquei milhar, dezena e centena, do
primeiro ao quinto, numa rodada que chamavam de Paratodos e em outra,
baseada num sorteio diferente. Não cravei nada, minha história de
acertos ficou naquela dezeninha.
Acabo de confessar que já fui contraventor, não me regenerei para o
bom convívio social e, com revoltante cinismo, não manifesto
arrependimento algum. Na verdade, vocês devem ter percebido, pelo meu
jeito de abordar o assunto, que sou um desses elementos capazes de
reincidir a qualquer momento e admito que, se sonhar com o Ronaldinho
do Flamengo, sou homem de, levado pelo permanente sorriso do craque,
procurar o apontador aqui da esquina e descarregar uma graninha (coisa
modesta, de escritor mesmo) no jacaré. Mas atirem a primeira pedra os
que me reprovam. Um estrangeiro não entenderia nada do que falei
acima, mas vocês todos, inclusive muitos dos que nunca jogaram,
entenderam tudo. Ainda outros, também em grande número, estão
capacitados a me ensinar muita coisa, ou tudo, sobre o jogo do bicho.
Não se trata de ser a favor de jogos de azar, trata-se de tentar
acabar com essa hipocrisia em torno de um jogo tão arraigado em nossa
cultura e até mesmo nossa língua. Estou convencido de que, se fosse
feita uma pesquisa séria, o povo brasileiro, que joga no bicho de
norte a sul, revelaria muito maior confiança no bicho que nos seus
governantes, os quais se acostumou a ver como ladrões, privilegiados,
mentirosos ou incompetentes. Tudo bem, é para proteger o cidadão,
impedindo-o, por exemplo, de gastar o dinheiro do supermercado no
jogo. Então vamos também protegê-lo de senas, megassenas, raspadinhas
e não sei quantos mais jogos de azar legalizados, onde ele pode
perfeitamente fazer a mesma coisa. Claro que é hipócrita quem torce um
nariz santimonial para o jogo do bicho, mas joga na megassena, entra
no bolo do futebol, curte um pôquer no fim de semana ou dá sua
raspadinha.
Agora acaba de ser realizada uma brava operação no Rio de Janeiro, em
que grandes bicheiros foram presos. Mais do mesmo filme, uma enorme
farsa, uma encenação em que todos fingem acreditar que aquilo vai
resolver alguma coisa. Não me manifesto nem contra a decisão judicial
que deflagrou a operação, nem contra a polícia que a realizou. Tanto
uma quanto outra obedeceram a lei, o que, embora longe de ser a regra
entre nós, é pelo menos o cumprimento da lei. Mas essa lei, em toda a
nossa história, tem sido ignorada, até agora é ignorada em muitos
Estados e sempre dependeu da vontade de quem está no poder. Nunca
houve nenhum problema público grave, causado pela tolerância ao jogo
do bicho, ao contrário da intolerância.
A intolerância e a guerra ao bicho não se devem a nenhuma proteção do
cidadão, que aparece aí somente para enfeitar e dar um aspecto cívico
ao besteirol farisaico em que ela se fundamenta. O bicho, variando com
as circunstâncias de tempo e lugar, precisa continuar ilegal. Desta
forma, nas mãos de um governante sagaz, é até um instrumento político
de grande serventia. Seria mais fácil, mais coerente, mais econômico,
mais gerador de empregos, mais racional e mais pragmático que ele
fosse legalizado. Isso, contudo, poderia ser o golpe de morte num
setor não tão desprezível de nossa economia, e não estou sendo
irônico. Sem a ilegalidade, para onde iriam as propinas e peitas
variadas que, como se diz hoje, "fazem a diferença" para milhares e
milhares de chefes de família em todo o Brasil, de policiais civis e
militares a autoridades dos mais diversos níveis, além de vereadores e
deputados? Pode-se desmontar toda essa complexa rede socioeconômica e
suas ramificações, sem um sério impacto? E que dizer dos equipamentos
usados nesse combate, seus fabricantes, distribuidores, vendedores e
compradores comissionados? Precisamos lembrar que o Rio, assim como
Cabul ou Bagdá, é um dos centros urbanos onde se usa rotineiramente
equipamento de combate pesado e o mercado brasileiro nessa área fica
cada vez mais suculento. O que dá pra rir dá pra chorar, a morte e a
violência são um bom negócio para muitos. Assim como a guerra ao jogo
ilegal - e nós, os otários de costume, acreditamos e pagamos.