quarta-feira, fevereiro 22, 2012

O pessimista entre a anarquia e o poder Eliana Cardoso*

O Estado de S. Paulo - 22/02/2012
 
No território da bandidagem e da violência, a discussão da origem do Estado não se assenta na República de Platão, mas na lenda hobbesiana da vida curta e brutal. E - lamenta-se o señor Juan, protagonista de Coetzee no Diário de um Ano Ruim - Hobbes nos esconde que a entrega do exercício da força ao Estado é irreversível e impede para sempre a volta ao estado natural. Entretanto, se o estado natural era a barbárie, porque haveríamos de querer voltar para lá? Você não quer. Nem eu. Mas ao señor Juan interessa demonstrar a solidez da opinião anarquista: o que está errado com a política é o poder em si. Para ilustrar seu argumento o señor Juan comenta a "ingenuidade" do filme Os Sete Samurais, no qual Kurosawa oferece sua versão da origem do Estado. Uma aldeia japonesa, durante um período de desordem política - quando o Estado praticamente deixara de existir -, sofria invasões de uma tropa de bandidos, que roubava mantimentos, estuprava mulheres e matava quem resistisse. Aos poucos, os bandidos - mutantes de predadores em parasitas - sistematizaram as visitas, comparecendo à aldeia apenas uma vez por ano para cobrar tributo. O filme começa com a decisão dos camponeses de contratar um bando de durões (sete samurais desempregados) para proteger a aldeia. Os samurais derrotam os bandidos e, tendo visto como o sistema de extorsão funciona, oferecem aos camponeses uma proposta: pagamento anual em troca de proteção permanente. Como Kurosawa é um sonhador romântico, quando os camponeses recusam a oferta, os samurais vão embora em paz. Coetzee desacredita do final feliz do filme de Kurosawa, mas é exatamente um final feliz que desejamos na solução dos conflitos iniciados pela Polícia Militar que ocupou a Assembleia Legislativa da Bahia, durante a segunda semana de fevereiro. Por isso, vários analistas tentaram entender o que se passou e perguntar como evitar que o motim se repita no futuro. Vale começar passando em revista o susto da população brasileira, quando o movimento articulado por grevistas espalhou o pânico para forçar a aprovação da PEC 300, que cria piso nacional para o salário de policiais e bombeiros. Os homens do Exército e da Força Nacional fecharam o cerco aos policiais militares acampados dentro do prédio da Assembleia Legislativa em Salvador, transformado em quartel-general dos grevistas. Fracassada a primeira tentativa de negociação, o Exército endureceu. O clima ficou tenso. Helicópteros deram rasantes sobre o prédio. De dentro da Assembleia, um dos líderes do movimento ordenou atos de vandalismo. A greve provocou uma onda de crimes. Houve relatos de mendigos assassinados e ônibus invadidos por supostos policiais. O Exército reforçou a tropa que cercava a Assembleia. Suspendeu a entrega de comida. Cortou a energia e a água. A ocupação terminou. As greves policiais são comuns no Brasil, declarou um defensor dos grevistas, no suplemento Aliás de O Estado de S. Paulo, como se o clichê do "todo mundo faz" pudesse justificar a não justificável violação dos direitos humanos da população, sujeita a assassinatos e saques. A maioria dos analistas concordou que a reivindicação salarial era justa. Mas a maioria também argumentou que uma reivindicação justa deixa de sê-lo quando vem vinculada a técnicas de intimidação e extorsão. A discussão então se voltou para a regulamentação do direito de greve do setor público e a omissão do Congresso Nacional na aprovação desse disciplinamento. Mas a nossa Constituição inclui os policiais e os bombeiros na categoria de militares, porque a eles cabe preservar a ordem e garantir a segurança. Os profissionais que portam armas estão, segundo a Constituição, barrados da sindicalização e da greve. A esses servidores públicos, portanto, não se aplica a necessidade de regulamentação do direito de greve, pois a proibição já existe. Nenhuma democracia conta com organizações simétricas para todos os seus grupos. Por exemplo: os desempregados, os consumidores e os contribuintes não se encontram organizados. A consequência é que grupos organizados e poderosos (como o dos trabalhadores sindicalizados ou o dos banqueiros) tendem a ignorar as perdas para os grupos não organizados. As forças do mercado não são suficientes para garantir comportamentos que beneficiem igualmente todos os grupos sociais. Entende-se, portanto, que os policiais precisam reivindicar ajustes, mas terão de fazê-lo por meio de atos de suas associações ou esperar que o Estado lhes dê cobertura legal para realizarem um movimento reivindicatório disciplinado e com mobilização parcial, sem ação violenta, sem ocupação de prédios e sem vandalismo. Aqui entra a inação do Congresso Nacional e dos governos estaduais e federal. A sociedade pergunta-se por que a PEC 300, que tramita na Câmara desde 2008, ainda não foi discutida nem se votaram emendas para harmonizar salários levando em consideração as condições e o custo de vida nas diferentes regiões do País. Por onde andavam nossos representantes todos esses anos? A explicação parece ser a de que os políticos acreditam que não têm mandato para se anteciparem aos problemas e o público não reage à inação de seus representantes. A consequência é que problemas que parecem pequenos acabam se transformando em tragédias. A Câmara só age sob pressão. O señor Juan - personagem de Coetzee que abriu este artigo - declara-se anarquista-quietista-pessimista. Anarquista porque o que está errado com a política é o poder em si. Quietista porque a vontade de se pôr a mudar o mundo se encontra, ela também, infectada pelo desejo de poder. E pessimista porque não acredita que coisas possam mudar. A posição parece intelectualmente sofisticada. E, com certeza, é cômoda. Mas se todos pensarmos como ele, estaremos entregando o Brasil aos bandidos.
 *ph.D em Economia pelo MIT, é autora de "Mosaicos da Economia" (Saraiva, 2010).