quarta-feira, fevereiro 22, 2012

Lições da Perestroika na economia - LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

VALOR ECONÔMICO - 22/02/12




O debate sobre os efeitos da abertura da economia na sociedade brasileira em geral - e na indústria em particular - pode se beneficiar de algumas lições da Perestroika na Rússia ainda comunista. Explico a seguir o porque dessa minha afirmação.

Em ambos os casos trata-se do processo de reação de uma sociedade complexa diante da distensão de regras restritivas à liberdade de indivíduos e grupos sociais impostas pelos governos nacionais. No caso russo o aspecto dominante foram as liberdades políticas do cidadão e da sociedade; no caso brasileiro de agora é a busca da liberdade econômica por parte de consumidores e empresas produtoras de bens e serviços que está no centro das mudanças.

Na Perestroika me interessam suas lições sobre a impossibilidade do governo de controlar a velocidade e a intensidade com que a liberdade política voltou ao espaço social russo. Uma vez iniciada a abertura, a complexidade do que se seguiu não estava prevista nos planos dos dirigentes comunistas, e os acontecimentos na Rússia e em outros países comunistas fugiram totalmente do controle.

Com as importações liberadas, empresas brasileiras se dão conta dos desafios das novas e das antigas restrições

A abertura da economia brasileira nos últimos anos acontece com tintas muito semelhantes. Reconheço que a dramaticidade e a influência sobre a vida do cidadão soviético da Perestroika foi muito maior do que o processo que temos hoje no Brasil. Por isso quero deixar claro que me interessam apenas algumas semelhanças que existem entre eles.

A primeira delas é o encadeamento dos ajustes que passam a ocorrer quando, uma vez liberadas as restrições externas, forças naturais passam a agir na sociedade. No caso brasileiro trata-se da liberdade do consumidor de escolher entre produtos e serviços disponíveis no mercado interno e outros que são oferecidos a partir do exterior. E aqui estamos falando não apenas de bens físicos, como televisores e automóveis, mas de serviços como férias em Miami ou mesmo Paris.

Durante décadas foi negado ao consumidor brasileiro esse direito de escolha. Até 1990 esse impedimento era de natureza legal, pois leis e regulamentos criados ao longo do regime militar criminalizavam a importação de bens e os gastos em moeda forte no exterior. A partir do governo Collor essas restrições foram aliviadas, mas o consumidor brasileiro continuou confinado ao mercado interno pelas inseguranças associadas à taxa de câmbio. Com a elevada volatilidade de nossa moeda, os canais de distribuição de bens e serviços necessários para o consumidor ter acesso às importações não se desenvolveram de forma sistêmica. Essa limitação, na prática, significou a manutenção de uma economia fechada no Brasil.

Esse quadro mudou drasticamente com a entrada da China no mercado de bens primários. Entre o início do século XXI e o segundo mandato do presidente Lula, os preços de nossas exportações cresceram mais de 30% em relação aos das importações. Essa melhora em nossos termos de troca transformou o real em uma moeda forte e incrivelmente estável no médio prazo. Com a habitual rapidez com que as empresas brasileiras se adaptam a novos tempos, nos últimos anos montou-se no Brasil uma sofisticada e eficiente rede de distribuição de produtos e serviços importados. E o consumidor passou a ter, pela primeira vez em muitas décadas, a liberdade de escolha.

Essa busca por parte do consumidor brasileiro trouxe os holofotes da opinião pública para outra restrição à liberdade econômica que prevaleceu no Brasil por mais de quatro décadas: a liberdade para as empresas brasileiras de trabalhar e produzir com custos compatíveis com os de seus concorrentes em outros países. Essa descoberta é mais recente e só agora começa a ser percebida - e exigida - por muitas delas. Dou um exemplo dramático e recente: as empresas brasileiras são hoje obrigadas a comprar o gás natural de petróleo da Petrobras por um preço quatro vezes superior ao que prevalece nos Estados Unidos. O mesmo ocorre com outros insumos de produção como energia elétrica, custos de logística e taxas reais de juros nas operações de crédito.

Outro exemplo dessa contradição é o nosso sistema tributário. Com uma carga de impostos sobre a produção pelo menos 10 pontos mais elevada, esse aleijão competitivo ficou mascarado por décadas por ser a economia insulada das importações e nossa moeda muito desvalorizada. Outro foco gravíssimo desse problema de competitividade - embora este de natureza conjuntural - é hoje o mercado de trabalho. Com as taxas de desemprego em níveis muito baixos, o custo da mão de obra para as empresas brasileiras vem crescendo muito acima de seus concorrentes em outros mercados.

Neste ponto de minha coluna talvez a minha comparação com a Perestroika comece a ficar mais clara para o leitor do Valor. O processo de abertura às importações, em um tecido econômico e social com liberdades individuais restauradas no campo econômico, está criando um complexo processo de mudanças na sociedade. Como aconteceu no mundo comunista, os acontecimentos de agora se encadeiam e rapidamente criam novos desafios a serem enfrentados mais a frente. Por isso, tratar os problemas atuais na economia brasileira como uma mera crise na indústria provocada pelo real valorizado é uma simplificação perigosa.