domingo, dezembro 18, 2011

Reflexos da crise Míriam Leitão


O GLOBO


A crise dos Estados Unidos e países da Europa é tratada sempre pelo ponto mais agudo: o risco de colapso financeiro de bancos e países. Mas na esteira do roldão que arrasta a saúde fiscal dos governos e mina a confiança nos bancos, pessoas e famílias vivem dramas devastadores. O relatório que Michelle Bachelet entregou à presidente Dilma registra números inquietantes.
Ambientes de crises criam uma dinâmica que tornam mais agudos velhos problemas. O mundo tem absurdos inaceitáveis. Sempre foi assim, mas nas crises tudo se agrava. O relatório diz que o PIB global em 2010 foi dez vezes superior ao de 1950, um aumento per capita de 260%. O mundo melhorou, milhões foram incluídos nos frutos do progresso. Qualquer análise dos indicadores mostrará isso, mas com um salto dessa proporção as perversidades deveriam ser menores.
Uma mulher morre por minuto no mundo por complicações de gravidez ou parto. A morte materna cai apenas 2% ao ano desde 1990. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, 5,1 bilhões de pessoas, 75% da população mundial, não estão cobertos por sistema adequado de seguro social. A FAO, agência das Nações Unidas para o alimento, diz que quase um bilhão sofrem de fome crônica. Os macronúmeros desanimam, mas em períodos de maior reflexão, como o fim de ano, ajudam a lembrar em que mundo estamos.
O relatório da ONU tem como enfoque o “Piso de Proteção Social”, espécie de carteira de benefícios mínimos que os países precisam garantir aos cidadãos. Bachelet me disse que gosta muito das iniciativas brasileiras como Bolsa Família e Brasil sem Miséria, que são parecidas com outras redes de proteção social aplicadas em outros países. Mas isso não basta. Um dos objetivos é o de saneamento básico para todos. O Brasil tem números catastróficos nessa área, e a última Pnad mostrou queda da cobertura. Um espanto.
Os programas para garantir o mínimo à população não custam caro. Uma parcela irrisória, se comparados aos custos dos exorbitantes resgates financeiros. Estudos da OIT e FMI mostram que programas sociais em países pobres como Benim, El Salvador, Moçambique e Vietnã para dar um piso aos mais pobres custariam de 1% a 2% do PIB. Na África do Sul foi dado benefício à criança em situação de risco que protege 7,5 milhões de crianças e custa 1% do PIB. A China tem o programa de inclusão mais rápido da história. Entre 2003 e 2008 aumentou a cobertura de saúde básica de 15% para 85% da população e em dezembro de 2009 lançou um programa piloto de previdência rural que quer cobrir 700 milhões de chineses que vivem na área rural. Na Índia foi lançado o seguro-desemprego Mahatma Ghandi para o trabalhador rural que dá 100 dias de seguro por ano.
Não estou dizendo que se pode deixar bancos quebrarem em cadeia, criando risco sistêmico. Isso provocaria um colapso social. Não é uma escolha entre resgatar bancos ou pessoas. É mais sofisticado que isso. O resgate das instituições tem que ser feito não para manter a riqueza de acionistas, os bônus dos executivos — como vimos recentemente — mas para manter a economia funcionando.
O ponto do relatório é que apesar da extraordinária riqueza das últimas décadas, da pujança econômica, o mundo vive tragédias inaceitáveis. E que neste momento em que a crise econômica ronda países ricos, e a globalização faz com que todos estejam no mesmo barco, os riscos de problemas sociais aumentam. “O impacto de choques, tais como uma crise econômica, é absorvido e assimilado por mecanismos de enfrentamento das famílias e pode ter consequências duradouras no desenvolvimento humano, mesmo que as privações tenham sido de duração relativamente curta.”
A Europa há muito tempo tem rede de proteção social bem montada e em alguns casos até extravagante com benefícios caros e concedidos à classe média. Mesmo assim, há população exposta, diz o relatório: “Cerca de 80 milhões de pessoas na UE vivem em risco de pobreza, e 25% são crianças.”
A Europa terá que manter seus governos solventes, bancos saudáveis, cortar gastos sociais para fazer o ajuste necessário e ampliar a rede social para os mais pobres. Tudo ao mesmo tempo. Há quem defenda que o governo apenas amplie o gasto social, ou ache que os ajustes fiscais são perversos e impostos pelo mercado. A confusão aqui é que a Itália, por exemplo, já tem alta carga tributária e dívida de 120% do PIB. Se o país ampliasse o gasto, em vez de propor um ajuste, como faz o governo Mario Monti, os poupadores teriam que ser convencidos de que é seguro continuar financiando o endividamento crescente do país. Isso é que torna a receita mais complexa. É preciso fazer o ajuste e escolher melhor o destinatário do dinheiro público.
O desemprego está alto e o risco é que aumente se a crise se agravar. E dos 212 milhões de desempregados do mundo em 2009 apenas 33 milhões tinham seguro-desemprego. No Brasil, é bom lembrar que mais de 40% dos trabalhadores não têm direito ao seguro-desemprego porque estão no mercado informal. Tanto no Brasil quanto no mundo a proteção social aumentou na última década. Mas é ainda insuficiente. E se a crise não for debelada, a conta será paga pelos mais frágeis.