domingo, dezembro 11, 2011

Chega de mau humor - FERREIRA GULLAR



FOLHA DE SP - 11/12/11
Entre outras coisas, o que é bom de eu escrever uma coluna é que posso abordar qualquer assunto. Só não posso ser chato. Assim me divirto e espero que o leitor também.

Hoje, por exemplo, me deu vontade de escrever sobre pessoas engraçadas que conheci ao longo desta vida que, para falar a verdade, não acho tão longa assim. Só me dou conta disso quando começo a pensar em tanta gente que se foi. Mas é melhor mudar de assunto porque, como disse, hoje quero é rir e fazer rir, nada de fossa.

O primeiro cara divertido que conheci foi o meu pai, Newton Ferreira, que começou centroavante do Luso Brasileiro e terminou quitandeiro, na época da Segunda Guerra Mundial.

Ligava o rádio na quitanda para ouvir o noticiário, junto com os fregueses contumazes, que ficavam ali bebendo meladinha, mistura de cachaça com mel de abelha. Ou porque o rádio não era lá essas coisas ou porque ali havia interferências demais, mal dava para ouvir a voz do locutor. Meu pai afirmava que aquilo eram descargas de fuzis e metralhadoras na frente de batalha.

Já o seu João Pinto - que não sei se era mais mentiroso que gozador - contava a história do coqueiro que plantara no quintal e que não crescera mas, em compensação, dera um coco, que crescera tanto a ponto de ter sido obrigado a cavar o chão, para facilitar-lhe o crescimento.

Anos depois, no Rio, encontrei muito mais gente mentirosa e engraçada também, inclusive jornalistas, poetas e pintores.

Na revista "O Cruzeiro", onde trabalhei, quase não ri, mas em compensação, na Manchete, ria mais do que trabalhava. Tanta gente engraçada havia ali, a começar por Adolfo Bloch, o dono da empresa, que ficava furioso quando aparecia gente miserável, esquelética ou maltrapilha. Tinha que ser tudo bonito.

Contam que, anos depois, ao se deparar com um redator na redação, sem camisa (porque o ar refrigerado pifara), tirou as próprias calças, ficando apenas de cuecas. "Se é para esculhambar, vamos esculhambar de uma vez", gritou.

Quando a revista ainda era na rua Frei Caneca, ele quis me demitir porque apareci na televisão, falando em nome da revista, sem gravata e barba por fazer. Otto Lara Resende, chefe de redação, não deixou.

Otto propôs, de gozação, para a campanha eleitoral de 1960, o seguinte slogan: "Chega de intermediários. Para presidente, Lincoln Gordon" (Gordon era o embaixador norte-americano no Brasil).

Otto reuniu na Manchete um time exemplar, de Armando Nogueira a Borjalo, Jânio de Freitas e Amilcar de Castro. Com minha adesão, estes dois decidiram mudar a paginação da revista, introduzindo amplas áreas em branco.

Adolfo perdeu a paciência e proibiu o que considerava desperdício de papel. No dia seguinte, Borjalo escreveu no quadro da redação: "Preconceito de cor: guerra contra o branco". O desfecho dessa rebelião foi a saída de Otto e a demissão de todos nós.

A redação do Diário Carioca era uma pândega permanente. E o jornal também. Creio que foi ali que surgiu o bom humor no jornalismo brasileiro. Quando as fãs de Marlene e Emilinha passavam gritando o nome delas, Tinhorão ia para a janela: "Macacas de auditório! Macacas!". A Rádio Nacional ficava na esquina.

Era o governo de Juscelino Kubitschek. Depois viria Jânio Quadros e, em seguida, João Goulart, quando a luta pela reforma agrária recrudesceu.

Contam que um fazendeiro, assustado com as Ligas Camponesas, reuniu os seus empregados e explicou-lhes que o comunismo era uma desgraça, ninguém tinha direito a nada, tudo o que produzissem lhes seria tomado.

Foi quando um camponês pediu a palavra: "Pelo o que o senhor acabou de dizer, acho que já estamos num comunismo brabo danado".

Pouco depois, vinha o golpe de 1964 e muita gente teve sua casa invadida. Uma delas foi a de Carlos Estevão, ex-presidente do CPC da UNE, onde apreenderam livros ditos subversivos.

No quartel do exército, para onde o levaram, apareceu um coronel que começou a fazer perguntas. "Por que o senhor está preso?". "É que eu tinha em casa uma espingarda do papo amarelo...". "Já sei, porte de arma. E o senhor?", perguntou ele a Carlos Estevão, que lhe bateu continência e respondeu: "Porte de livro, coronel".