domingo, dezembro 11, 2011

A Argentina preocupa - SERGIO FAUSTO


O Estado de S.Paulo - 11/12/11



Em 23 de outubro, data das eleições que levaram Cristina Kirchner a seu segundo mandato, escrevi neste espaço que, mais cedo ou mais tarde, ela teria de fazer ajustes na economia argentina. Era óbvio que gastos públicos e emissão monetária não poderiam continuar crescendo por mais tempo. Só não foram freados antes para não prejudicar uma vitória folgada, que assegurasse maioria na Câmara e no Senado à presidente reeleita.

Alcançado o objetivo, os ajustes começaram, mesmo antes da nova posse oficial de Cristina Kirchner, agora em 10 de dezembro. O que não mudou nem mudará é o método de governar, conforme fica visível na forma arbitrária e idiossincrática como os ajustes estão sendo feitos. Desconfiados, os argentinos vêm trocando pesos por dólares em quantidades crescentes, remetendo ao exterior parte significativa do dinheiro convertido em moeda americana. A tendência à desvalorização do câmbio ameaça jogar mais lenha na fogueira da inflação.

O governo reage de modo característico, pela intimidação direta a bancos e empresas que negociam com a moeda estrangeira. Amedrontado pelo arbítrio governamental e/ou aconchegado por favores oficiais, o empresariado limita-se a vazar anonimamente para a imprensa algumas das pressões sofridas. Até porque precisará do governo para enfrentar um movimento sindical que se prepara para lutar por reposições salariais à altura das incertas expectativas quanto à inflação futura. Cristina Kirchner já identificou o perigo e trata de reunir forças para enquadrar a Confederação Geral do Trabalho (CGT) e seu líder Hugo Moyano, que já mereceu tratamento de aliado preferencial.

Quem conhece a Argentina sabe que ou a presidente consegue conter dentro de certos limites a disputa distributiva e a mobilização social ou o futuro político de seu segundo mandato estará comprometido logo na partida. Se conseguir superar esse desafio, poderá passar à realização de seus objetivos maiores. Dessa perspectiva, o horizonte também está carregado.

Na Argentina, mais preocupante do que a desorganização da economia é a deterioração das instituições democráticas. Por trás da preocupação existem dois motivos principais: o domínio crescente do "oficialismo" sobre o Judiciário, em particular sobre o Conselho da Magistratura, responsável pela realização de concursos e pela nomeação de juízes; e o propósito declarado, pela presidente-candidata e por seus partidários, de deflagrar, sob o slogan aparentemente benigno da "democratização da mídia", um ataque frontal aos órgãos de imprensa indóceis ao governo, passando, entre outras coisas, pela estatização da empresa responsável pela importação de papel.

No último mês, mais um fato surgiu para indicar, como se ainda fosse necessário, a pretensão do governo de Cristina Kirchner de traduzir sua maioria parlamentar (e seu controle sobre o aparelho de Estado) em maior poder sobre os meios de formação da opinião pública. Em outras palavras, sua ambição de transformar o poder político circunstancial emanado das urnas em hegemonia no campo da comunicação de massas e da cultura, para aí assentar as bases de um projeto de poder de longa duração.

Em decreto publicado no final de novembro, a presidente criou o Instituto Nacional de Revisionismo Histórico Argentino e Iberoamericano, com o propósito de produzir e disseminar trabalhos que ponham em xeque a versão liberal da História argentina e deem destaque a setores e líderes populares supostamente obscurecidos pela versão dita dominante da História do país. A iniciativa revela menos a preocupação de Cristina Kirchner com o passado do que com o presente e o futuro.

Vem da década de 1930 a disputa entre a visão que ilumina favoravelmente as lideranças políticas liberais da segunda metade do século 19 e a que enxerga os próceres liberais como representantes de uma elite afastada do povo e subserviente à mentalidade e aos interesses de potências estrangeiras. Se Cristina retoma agora o "revisionismo histórico", numa perspectiva mais à esquerda, é porque lhe interessa fixar uma narrativa política que confira às ações do seu governo a dimensão de uma batalha histórica pela libertação do povo e da nação argentina. Nesta etapa recente, avultariam sua liderança e a de seu falecido marido, Néstor Kirchner, numa versão contemporânea e invertida do mítico casal Juan Domingo e Eva Perón.

Fosse essa a iniciativa de uma liderança ou de um partido político, financiada com recursos privados, não haveria o que objetar. Estaríamos no terreno do pluralismo, que é próprio das democracias. Mas o que temos aqui é algo bem distinto. O Instituto Nacional de Revisionismo Histórico Argentino e Iberoamericano será um órgão estatal, financiado com recursos públicos e dirigido por pessoas nomeadas pelo governo. Tem razão Beatriz Sarlo, escritora e intelectual independente, que apontou o maior perigo do recém-criado instituto: tornar-se um centro produtor de livros didáticos que sirvam para a doutrinação política de crianças e jovens nas escolas públicas do país. Não haverá de ser por mera coincidência que pouco antes o vice-presidente eleito e atual ministro da Economia, Amadou Boudou, tenha defendido mudanças curriculares nos cursos de Economia das universidades públicas para adequá-los ao "novo desenvolvimentismo" defendido pelo governo.

Desenha-se na Argentina um quadro que, sem ser igual, tem semelhanças com os de outros países latino-americanos governados por grupos políticos que convivem mal com a crítica, o pluralismo e a oposição: intervenção arbitrária na economia, partidarização do Judiciário, ataques à imprensa, projetos "hegemônicos" no campo da cultura.

Se mantiver o controle sobre a economia, Cristina Kirchner tratará de aprofundar o modelo político já esboçado. Se a economia lhe fugir ao controle, o cenário será de crise. De um jeito ou de outro, a Argentina preocupa.