segunda-feira, novembro 28, 2011

Mazelas - próprias e adquiridas por contágio - MARCELO DE PAIVA ABREU


O ESTADÃO - 28/11/11


A leitura das páginas econômicas dos jornais tem suscitado depressão similar à que tradicionalmente acompanha a leitura das páginas policiais ou das peripécias do último ministro corrupto em busca de explicações sobre viagens gratuitas em aviões particulares e multiplicações patrimoniais inusitadas.

O mundo econômico está em chamas. A Europa, em meio a uma crise paralisante que ilustra de forma contundente as dificuldades que cercam a ação coletiva.

A dupla de timoneiros conservadores, Merkel e Sarkozy, atolada em hesitações, tem tido total insucesso em interromper o contágio que vem afetando toda a periferia da zona do euro. A ponto de,agora, a contaminação afetar a avaliação que os mercados fazem da França e, até mesmo, da própria Alemanha. Dificilmente nas ruminações hegemônicas germânicas no passado terá sido a ventado o cenário atual no qual, em qualquer desenlace, o grosso da conta será pago por quem se senta à cabeceira. Não é bem a hegemonia imaginada por Bismarck ou pelo Terceiro Reich. É uma situação em que o melhor cenário será a Alemanha pagar a conta e, simultaneamente, assegurar o efetivo controle fiscal dos membros da zona do euro. E, ao mesmo tempo, lamentar-se quanto à sua imprevidência sobre a possibilidade de ocorrência da orgia fiscal mediterrânea e aos custos do exercício da liderança.

Não é que os críticos de "Merkozy" pela esquerda tenham qualquer ideia que se salve sobre como enfrentar a ameaça de derretimento do euro.

Embora os governos de esquerda estejam sendo sucessivamente massacrados nas urnas - bunga bunga à parte -, o clima dominante globalmente é de protesto ao estilo do "ocuppy Wall Street", versão edulcorada da"chienlit" gaullistade1968.Os analistas de esquerda não vão além de ideias realmente muito velhas. Boa ventura de Sousa Santos, alto sacerdote coimbrão da heterodoxia econômica, por exemplo,decreta,em jornais brasileiros, a morte da OMC e defende que "os lugares de consumo coincidam com os lugares de produção".

Terá saudades das pragmáticas do Conde de Ericeira, atrasando o relógio mais de três séculos...

Nos EUA, em contraponto, o impasse é de outra natureza: a rivalidade partidária paralisa a tomada de decisões sobre a adoção de políticas que facilitem a retomada do crescimento. Como pano de fundo, as primaveras árabes adquirem prematuros tons invernais.

Na vizinhança mais próxima do Brasil, a Argentina, a despeito da consagração nas urnas do neoperonismo recauchutado, mostra sinais de clara fadiga com sua combinação peculiar de subsídios generalizados, penalização de exportadores eficientes,falsificação de índices de preços e coação da imprensa independente.

O regozijo brasileiro como fato de estarmos evitando o atoleiro global deve ser muito comedido.

A recorrência da crise global num cenário de desgraças cumulativas poderá afetar de forma decisiva o desempenho econômico do Brasil, tanto diretamente quanto indiretamente, via seus efeitos sobre a economia chinesa, a atual locomotiva do crescimento brasileiro.

Especialmente quando o Brasil enfrenta uma coleção de dificuldades que lhe são específicas.

O Brasil tem fracassado na tentativa de elevara taxa de poupança para que seja possível pensar em crescer talvez de forma sustentadaa4,5% ao ano. A alternativa seria perpetuar a dependência de poupança externa e expor-se ao risco de choques externos. E há pelo menos duas agravantes relacionadas à insuficiência de poupança que têm impacto relevante sobre o custo dos investimentos.

O governo tem demonstrado singular inépcia na formulação e gestão dos grandes projetos de investimento, especialmente na área de infraestrutura. Além disso, a política comercial brasileira tem mostrado ser o pior lado da política econômica na gestão Rousseff, aumentando a proteção e criando parafernália regulatória quanto ao conteúdo nacional de equipamentos, especialmente na área de energia. Estão criados os incentivos para que se perpetue a produção de bens de capital a preços muito acima dos praticados no mercado mundial e se consolidem os habituais lobbies rentistas.

O governo brasileiro gasta muito e mal. O aumento persistente de gastos - nem sempre registrados adequadamente nas contas públicas - tem sido possibilitado pela expansão da carga tributária.

É difícil vislumbrar um cenário em que o governo controle os seus gastos e volte a gerar poupança pública significativa. E mais, a despeito de carga tributária típica de economia madura, os gastos estão indevidamente concentrados em despesas correntes injustificáveis e os serviços providos pelo governo são de baixa qualidade.

Embora, em alguns casos, como educação, esteja havendo lenta progressão rumo à decência, há ainda enorme complacência quanto ao atraso brasileiro em relação a muitos outros indicadores.

O atraso em relação a serviços como saneamento, saúde e justiça é imenso, e o nível de consciência coletiva sobre as inadequações, extremamente reduzido.

No caso do funcionamento da Justiça, por exemplo, a situação é particularmente grotesca, com a combinação de morosidade com prazos de prescrição generosos, resultando em garantia de impunidade.

Mesmo sem recorrência da crise global, há muito a corrigir.

Com crise global, o espaço para correções ficará muito limitado.

Vai ser ainda mais difícil que o gigante acorde de seu torpor. Mesmo com as promessas do pré-sal.

DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, É PROFESSOR TITULAR NO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO