O ESTADÃO - 02/11/11
Aos poucos, articula-se a ideia de que a crise internacional, da qual não se enxerga o fundo, representa uma oportunidade para que o Banco Central (BC), piedosamente, corte rápido a taxa de juros. A tese é tentadora. Faz parte do repertório de besteirol dos livros de autoajuda corporativa dizer que o ideograma chinês que significa "crise" traz também o significado de "oportunidade". Há quem pense que essa bizarrice possa inspirar a condução da política monetária. Por trás dessa visão de Poliana confucionista, no entanto, está a percepção de que os juros são altos não porque tenhamos problemas estruturais, mas apenas por teimosia da autoridade monetária, insensível às carências sociais. Há quem vá além e pense que essa maldade decorra de o BC ter sido "capturado" pelo mercado financeiro. Como os bancos ganham com juros altos, eles orientam seus economistas a superestimar a inflação, alardeando um perigo que não existe e induzindo o BC a erro. Faria sentido, se fosse verdade.
O BC divulga a expectativa da inflação do mercado financeiro para os 12 meses subsequentes. Pois o "mercado", contrariando a tese conspiratória, tem sistematicamente errado para menos as expectativas de inflação anual. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado nos 12 meses até setembro variou 7,3%, muito mais que as expectativas dos economistas de mercado há 12 meses, quando se previa uma inflação de apenas 5,14%.
Não há dúvida de que os juros altos constituem uma aberração. Eles não só reprimem o crescimento econômico como drenam vultosos recursos tributários para o pagamento do serviço da dívida - a "bolsa juros" em 2011 deve ser 14 vezes maior que o Bolsa-Família. Como a carga tributária entre nós é regressiva e como o pagamento de juros é, por definição, feito de acordo com o estoque de riqueza líquida existente, o impacto sobre a concentração de renda é muito grande.
Mas o corte dos juros exige mais do que sensibilidade social e boa vontade. Também não é uma mera questão de aproveitar oportunidades supostamente criadas pela crise internacional. Não é por acaso que o Brasil se transformou no nirvana dos rentistas e não será sem esforço que escaparemos deste quadro. A solução não é simples, ainda que dela se conheçam alguns ingredientes.
Um corte de despesas públicas, tão ao gosto dos analistas do mercado financeiro, seria benfazejo - se fosse possível. O problema é que não é. Nenhum CEO do setor privado conseguiria cortar despesas se parte significativa de seus gastos fosse vinculada à receita e a demissão de funcionários fosse vetada. Mas, mesmo dentro das restrições impostas pelo nosso presidencialismo de coalizão, seria possível, se vontade houvesse, assumir a meta de zerar o déficit nominal dentro de um par de anos. Esse objetivo reduziria o ônus que recai hoje sobre a política monetária.
A gradual desindexação da economia é outra iniciativa factível. Quase 20 anos depois do êxito do Plano Real, convivemos ainda com o vício da indexação. Ainda que a batalha da superindexação do salário mínimo esteja perdida, há espaço para o Banco Central apressar as exéquias da LFT. Este título se destacou pelos valiosos serviços prestados, mas nada justifica sua sobrevivência. A esta altura, as LFTs deveriam ser vendidas apenas em feiras hippies, ao lado de batas, incensos, discos de vinil e toda a memorabilia dos anos 70. A mesma ousadia que o BC usou para cortar as taxas de juros recentemente poderia ser direcionada para acabar gradualmente com as LFTs e seus clones. Da mesma forma, e com mais razão, não tem sentido indexar a caderneta de poupança à taxa Selic, o que configuraria importante passo na direção errada.
Há muito a fazer para que se criem as condições para termos juros mais baixos. Seria bom começar. A crise não pode ser pretexto para a inércia.