domingo, outubro 02, 2011

A volta da aliança inflacionária JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS



O Estado de S.Paulo - 02/10/11

O Imposto de Produtos Industrializados (IPI) dos carros importados foi recentemente elevado em 30 pontos porcentuais. Os carros pequenos que pagam 7% vão pagar 37%, e os de 25% serão tributados em 55%, um pesadíssimo aumento. O anúncio foi feito perante uma animada plateia de industriais e sindicalistas, perante os quais utilizou-se o argumento de que é preciso proteger a produção e o emprego nacionais. Será?

Não parece ser necessariamente o caso, uma vez que, dados acordos existentes, os carros produzidos no Mercosul e no México (em sua imensa maioria pelas montadoras já no Brasil há muito tempo), não serão atingidos. As importações dessas regiões correspondem a mais de 70% do total de veículos trazidos do exterior. Assim, o grosso do impacto será sobre os coreanos e chineses, e o efeito sobre o emprego e a produção no Brasil será muito modesto. O efeito maior é limitar a concorrência e não proteger a produção nacional e, portanto, permitir a elevação de preços. O peso de 30% de impostos adicionais certamente será distribuído ente redução de margens e elevação de preços ao longo do tempo.

Além do efeito concorrência, pode ser dito que:

1 - O consumidor será prejudicado pela redução das oportunidades de escolha e porque a maioria dos carros aqui produzida é bem antiga e de pior qualidade. A classe média vai pagar a conta.

2 - O impacto líquido no emprego (resultado de eventual maior produção local, depois de descontada a importação do México e do Mercosul, e considerando o menor crescimento dos sistemas de distribuição dos veículos que vão pagar mais imposto) deve ser modestíssimo, se positivo. Até onde sei, a produção do México é a mais beneficiada porque, pelo acordo atual, os carros lá produzidos podem ter até 30% de conteúdo local e não os 60% aplicados no acordo do Mercosul para Brasil e Argentina. No caso do Uruguai, o conteúdo é de 50% (decreto 4458, de 5/11/2002).

3 - O investimento em novas fábricas de montadoras que aqui ainda não produzem fica prejudicado, porque para não pagar o imposto será preciso utilizar pelo menos 65% de componentes nacionais. Ora, acho que desde a instalação da indústria automotiva no Brasil nunca uma planta começou a produzir com tal grau de nacionalização. É mais uma razão para se limitar a concorrência.

Na verdade, o que temos é a reedição de um movimento antigo, dos tempos da superinflação pré-Real, que foi batizado de coalizão inflacionária. Este termo foi cunhado e utilizado pelo economista argentino José Luiz Machinea para entender a inflação daquele país; Machinea argumentava que as indústrias mais fortes se entendiam com os sindicatos mais poderosos, especialmente no ramo automotivo, par a conceder generosos acordos salariais, que depois eram repassados aos preços, movimento possível dado o fechamento da economia ante a competição internacional.

O mesmo argumento passou a ser utilizado na explicação da nossa inflação dos anos 80, agravado pelo fato de que as usinas de aço, estatais na época, eram levadas a não elevar o preço das chapas para não pressionar a inflação, distorcendo ainda mais os preços relativos. A correção monetária generalizada e políticas expansionistas contribuíam para realimentar a alta dos preços. Foi essa situação que acabou levando à ideia de que a abertura à concorrência externa seria uma precondição essencial para um ataque bem-sucedido ao processo inflacionário. Da mesma forma, a privatização seria indispensável para melhorar a política fiscal (por exemplo, o subsídio ao aço custou ao Tesouro mais de US$ 20 bilhões nos anos 80) e elevar a eficiência da economia como um todo, o que acabou ocorrendo no Plano Real.

O novo plano automotivo lembra muito o passado. Permite entender porque os acordos salariais recentes na indústria automotiva foram tão generosos, variando de 14 a 20%, quando se consideram o reajuste geral e os valores fixos em reais a propósito de distribuição de resultado, bônus e outros esquemas. A maior diferença em relação ao passado está na elevação de tributos ao invés da concessão de subsídios diretos e indiretos. Entretanto, a pressão inflacionária subsequente é a mesma.

Câmbio. O real se desvalorizou forte nestes dias. Enquanto escrevo este artigo está em R$ 1,86 por dólar.

Várias são as razões para este movimento, a primeira delas a recente valorização do dólar lá fora, resultado da chamada fuga para a qualidade. Reforça esse movimento uma elevação das remessas de filiais brasileiras de empresas internacionais para as matrizes, evidentemente uma decorrência da piora da situação econômica, especialmente na Europa. Adicionalmente, a grande alteração das regras cambiais produziu uma mudança forte nas operações das tesourarias e de arbitragem. Isso decorreu menos do imposto de 1% sobre derivativos, mas muito mais por conta do enorme grau de arbítrio que agora dispõe o Conselho Monetário Nacional (CMN) para alterar, de um dia para o outro, regras sobre as alíquotas do IOF, margens etc. Basta pensar que o imposto pode, por exemplo, subir de 1% para 5% ou 10%, impondo perdas enormes nas operações. Com este grau de risco, muitos aplicadores deixaram de operar; outros alteraram a estrutura das operações, ficando comprados no Brasil e vendidos no balcão no exterior, ao contrário do que se fazia antes; por sua vez, as tesourarias logo perceberam que a ausência de vendedores criou oportunidades lucrativas na compra de dólares. Hoje apenas os exportadores e o Banco Central são vendedores, o que torna a moeda brasileira leve para depreciar, mas com maior grau de incerteza.

Prever o curso do dólar é sempre atividade de elevadíssimo risco, especialmente com o mercado manco, ou seja, com a ausência de vendedores regulares fora os exportadores. Entretanto, creio que pode ser dito que, enquanto a incerteza for tão elevada quanto a atual, nossa moeda seguirá mais desvalorizada. Apenas com uma eventual regularização do movimento de investimentos internacionais é que o real poderia voltar para uma faixa de R$ 1,70 por dólar.

Isto nos leva, mais uma vez, a dizer que os riscos para a inflação estão muito elevados. Aos efeitos do novo protecionismo e das pressões vindas do câmbio (nos preços de alimentos e nos custos industriais), devemos adicionar a força do mercado de trabalho, o reajuste do salário mínimo, as elevações contínuas dos preços de serviços e a expansão dos gastos públicos no próximo ano (inclusive pela anunciada contratação de mais 55 mil funcionários pelo governo).

Será preciso um derretimento de proporções bíblicas na economia mundial, incluindo Índia, China e toda a Ásia, para que o cenário no qual as autoridades apostam possa ocorrer. A alternativa possível é que o governo esteja disposto a conviver com a inflação mais elevada, independentemente de seus custos.