O Estado de S. Paulo - 02/10/2011 |
AFFONSO CELSO PASTORE, ECONOMISTA, EX-PRESIDENTE DO, BANCO CENTRAL, AFFONSO CELSO PASTORE, ECONOMISTA, EX-PRESIDENTE DO, BANCO CENTRAL - O Estado de S.Paulo
O Banco Central tomou a decisão de iniciar um corte precoce da taxa de juros, afirmando que não há riscos de que a inflação se situe acima da meta de 4,5% em 2012. É uma opção extremamente arriscada, e para garantir que não resulte apenas em uma inflação persistentemente acima da meta, teria de contar com a cooperação da política fiscal, com a elevação da meta de superávit primário para conter a demanda agregada e baixar a taxa real "neutra" de juros.
Não se trata de uma elevação transitória do superávit primário, como a insinuada pelo Ministro da Fazenda poucos dias antes de o Banco Central iniciar o corte de juros, quando anunciou que o governo não gastaria a receita extraordinária de R$ 10 bilhões, dois quais R$ 6 bilhões vieram de uma ação judicial perdida pela Vale do Rio Doce. O que é preciso é uma elevação permanente do superávit primário, livre das manobras que mascararam o seu efeito sobre a demanda agregada na fase das "políticas contra cíclicas", em 2008/2009.
Duas são as ações necessárias. A primeira é uma elevação permanente do superávit fiscal primário que leve a uma queda da taxa real de juros neutra. A dimensão desse ajuste teria de ser suficiente para trazer o déficit nominal para zero em um horizonte de tempo não muito longo. A segunda seria uma alteração na composição dos gastos públicos, reduzindo a proporção das despesas correntes, de forma a aumentar a poupança do setor público.
O Brasil é um país com baixas poupanças domésticas, e o financiamento de taxas mais elevadas de investimento implica a absorção de poupanças externas, que é realizada através do aumento das importações líquidas. Essa dependência se elevou nos últimos 20 anos. Nas décadas de 1970 e 1980, uma importação líquida de 4% era necessária para gerar taxas de investimento de 25% do PIB, que, às atuais taxas de crescimento da população economicamente ativa e da produtividade total dos fatores, levaria a uma taxa de crescimento do PIB em torno de 5,5% ao ano.
Mas, naqueles anos, o governo era um poupador, e atualmente tem uma poupança negativa. A queda da poupança faz com que essa mesma importação líquida seja, atualmente, associada a taxas de investimento próximas de 19% do PIB, que levam a uma taxa de crescimento menor, em torno de 4,5% ao ano. Se quisermos crescer mais, teremos de aumentar a poupança total doméstica, e isso se inicia com o aumento da poupança do setor público.
O crescimento econômico também é limitado pela elevada taxa real de juros. Ela não é alta por uma teimosia do Banco Central, que estaria apenas satisfazendo o desejo de lucro dos grandes bancos, como apontam análises que se baseiam na teoria conspiratória, e não na teoria econômica. Ela deriva do fato de que a taxa "neutra" real de juros - a que equilibra oferta e procura - é ainda muito elevada. Já foi mais elevada no passado, quando a dívida pública era maior, gerando prêmios de risco mais altos nos bônus de dívida soberana, e pode cair ainda mais se o governo dimensionar os superávits primários para reduzir aceleradamente a dívida pública.
Tais mudanças na política fiscal permitiriam taxas maiores de investimento com menores déficits nas contas correntes, ao lado de taxas reais de juros persistentemente menores. Mas é preciso resistir a passes de mágica, como o de que o déficit nominal deveria ser reduzido cortando a taxa de juros, e não elevando o superávit primário. Para que essa terapia tivesse sucesso, a inflação não poderia depender da taxa de juros. Quem não dá qualquer importância às evidências empíricas e se contenta negando qualquer relação entre os juros reais e a demanda agregada, simplesmente postula que a inflação é exógena, e que a elevação da taxa de juros serve apenas para aumentar o lucro dos bancos e valorizar a taxa cambial. Se nos contentarmos em habitar o mundo da fantasia e seguirmos essa recomendação, estaremos a um milímetro de distância da reintrodução, no Brasil, da dominância fiscal. Isto é, estaríamos colocando o Banco Central a serviço de uma política fiscal mais expansionista, levando, como no passado, a inflações mais elevadas.
Vale a pena recordar um pouco da história da dominância fiscal e do descontrole inflacionário no Brasil.
No governo Kubitschek não havia um banco central. O Banco do Brasil era ao mesmo tempo um banco comercial comum e uma autoridade monetária, à qual o Tesouro tinha acesso direto, financiando os déficits com a emissão de moeda. A ambição de "crescer 50 anos em 5" disparou os gastos públicos, e a inflação cresceu para gerar a arrecadação do imposto inflacionário.
O PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo) começou a corrigir esse problema quando realizou uma reforma tributária, controlou os gastos públicos e criou um banco central com a função única de realizar a política monetária. Era um passo adiante, mas tinha uma falha. As autoridades julgavam que não precisavam eliminar a inflação, mas simplesmente aprender a conviver com ela. Somente era possível vender títulos públicos se estes fossem protegidos da erosão do imposto inflacionário, o mesmo ocorrendo com as hipotecas, e por isso foi criada a correção monetária.
Mas, se a indexação poderia proteger da inflação os títulos públicos e as hipotecas, porque não aplicar o mesmo mecanismo a preços, salários e à taxa de câmbio, preservando a competitividade das exportações?
A consequência foi a perda de qualquer âncora nominal que permitisse manter a inflação sob controle. Em um mundo com mobilidade de capitais não há controle monetário quando há metas para o câmbio real. A taxa cambial não pode ser a âncora nominal, porque é indexada às inflações passadas, e a moeda não pode ser a âncora nominal, porque dada a mobilidade de capitais se ajusta passivamente aos choques inflacionários. Sem âncora nominal, e com todos os preços e salários corrigidos pela inflação passada, esta se projeta indefinidamente para o futuro.
Quando em 1979 o governo Geisel reagiu à crise internacional optando por não realizar um "ajustamento", e sim por "crescer para fora da crise", o fez induzindo empresas estatais a se endividarem no exterior, financiando-se com empréstimos externos permitidos pela "reciclagem de petrodólares". A política fiscal foi expansionista, não através do aumento do déficit público do governo central, mas através do aumento dos gastos de empresas estatais. O aumento da dívida externa financiava os investimentos, mas gerava a expansão monetária e do crédito, porque as metas para o câmbio real tornavam impossível o controle monetário, destruindo qualquer âncora nominal que contivesse o crescimento da inflação. O "choque inflacionário" se iniciava com a política "fiscal" expansionista dos investimentos de empresas estatais, e se propagava pela submissão do Banco Central, que não tinha instrumentos, porque naquele regime econômico a moeda se ajustava passivamente.
Atualmente a economia brasileira não é indexada, e a estabilidade é garantida por um Banco Central que deveria ser totalmente independente. O temor é que ele esteja sendo empurrado para o experimento de reduzir a taxa de juros, amainando seu compromisso com a meta de inflação, e buscando "crescer para fora da crise", derrubando a taxa nominal de juros que levaria à queda dos déficits públicos nominais.
Se o mundo entrar em uma recessão suficientemente grande para desacelerar a economia brasileira, essa estratégia temporariamente terá sucesso. Mas será um sucesso restrito ao período da crise, e não conduzirá a uma queda permanente da taxa real de juros, nem permitirá que o país cresça mais com déficits menores nas contas correntes. Se, contudo, a desaceleração mundial for menor, colheremos uma inflação persistentemente mais elevada, que somente poderá ser combatida restaurando uma total autonomia do Banco Central, e seguindo uma política fiscal que eleve os superávits primários e a poupança do setor público.
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