FOLHA DE SP - 30/10/11
Vivo descobrindo coisas sem importância, mas que me instigam e me fazem refletir. Claro que não estou me referindo ao aroma de jasmim, que me atordoou, certa noite, quando saía do prédio onde mora Cláudia. Aquilo pertence à categoria dos espantos, donde, no meu caso, nascem os poemas. Mas é raro de acontecer.
Fora esses espantos, há descobertas menores, menos espantosas, que não geram poemas, mas de qualquer modo provocam certo barato. Nascem como pequenos sinais. No início sem importância, mas que deixam um rastro, um vinco, que mal percebo; depois, outra sensação diferente, um curto-circuito mínimo, um choque e já então me dou conta de que alguma coisa está se revelando.
E assim foi que, de repente, percebi que o poema, na verdade, quer nascer sem ter começo. Como assim? Se quer nascer sem ter começo, quer então ser uma espécie de revelação, algo mágico ou místico? Não, místico não, que eu de místico não tenho nada. Revelação pode ser, porque não implica milagre.
Ocorre que essa percepção, de fazer um poema sem começo, surgiu, na verdade e confusamente, de outra descoberta: da quantidade de acaso que entra na realização de toda e qualquer obra de arte.
Essa descoberta já aparece como tema de alguns poemas de meu último livro ("Em Alguma Parte Alguma"), como na série que começa com o poema "Desordem" e prossegue com "Adendo ao Poema Desordem" e "Novo Adendo ao Poema Desordem".
Nesses poemas, está implícito, além do fator acaso, o fato de que a linguagem verbal não expressa plenamente a realidade, uma vez que, por ser um sistema, sua ordem não é a mesma que a ordem do mundo real, fora dela. Daí o poema "Fica o Não Dito por Dito", que abre o livro. Ou seja, como a linguagem só diz o que ela diz, não diz tudo, portanto. Por isso, porque não diz tudo, faço de conta que diz: fica o não dito por dito.
Além de o poema não dizer tudo o que o poeta deseja dizer, não sabe, ao começá-lo, o que vai dizer, porque, para sabê-lo, seria necessário que o poema já estivesse escrito. Assim, tudo o que há, então, é o desejo de dizer algo que o poeta não sabe o que será: está diante de uma página em branco e, portanto, aberto a todas as probabilidades.
Mas, ao escrever a primeira palavra, a probabilidade, que era quase infinita, diminui, porque essa primeira palavra já condicionará a seguinte, tornando-a, por assim dizer, necessária. E assim, palavra a palavra, o poema vai nascendo, num jogo de acaso e necessidade. Num jogo em que, à medida que o poema se constrói, haverá menos acaso, porque cada nova palavra ou verso, que a ele se acrescenta, é determinado pelo que já está escrito e ganhou sentido: o poeta já sabe, agora, o que quer dizer e, por isso, só entra nele o que for necessário.
Escrever, portanto, é vencer o acaso, tornar o fortuito necessário. Isso significa que o que não existia, que era apenas a aspiração de inventar do poeta, torna-se necessário ao poema e à nossa vida.
Qualquer poema que existe poderia não ter sido escrito, mas, uma vez escrito, pode tornar-se necessário por enriquecer-nos. Daí ter eu afirmado, certa vez, que a arte existe porque a vida não basta. E não basta porque tem de ser inventada.
E só então entendi porque, ao inventar de escrever o "Poema Sujo", queria, antes, vomitar toda a vida vivida, criando assim um magma de onde extrairia o poema. Era um modo de começá-lo sem começá-lo: ele já estaria todo ali, no que foi vomitado. Sucedeu que o vômito não saiu e, assim, tive de lançar mão de outro recurso, escrevendo estes versos que não se referem a nada precisamente: "Turvo, turvo / a turva mão do sopro contra o muro / Escuro / menos menos / menos que escuro...". O poema só começa - suponho eu - bem adiante, quando escrevo: "Um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas...".
Assim como só então entendi que não queria "começar" o poema, só agora também percebi que ele acabou antes que eu decidisse. De repente, após meses ligadão nele, cessou o impulso e eu não sabia como seguir em frente. O final do poema foi inventado por mim, conscientemente, fora do barato em que o compunha, porque teria de dar-lhe um fecho. De modo que é assim: o poema, de fato, não tem começo nem fim.