O Globo - 26/09/2011 |
Enquanto, para muitos, o marxismo vigia como a grande doutrina do século XX, os que compartilhavam dessa visão estavam relativamente tranquilos por fazerem parte de um mundo acomodado, onde todas as peças se encaixavam. Não importava que a realidade fosse totalmente diferente.
Neste mundo teoricamente acomodado, a luta de classes estruturava tudo, ancorada que estava numa classe, o proletariado, que teria a missão de resgatar a humanidade da opressão capitalista. Com a derrocada do comunismo/socialismo, os que continuaram, apesar de tudo, seguindo a doutrina marxista partiram para a busca de novos agentes históricos, criando um arremedo de luta de classes, agora focado igualmente em minorias. Já não mais valia a oposição entre burgueses e proletários, mas entre os "ricos" e os "pobres", as "elites" e os "trabalhadores" e assim por diante.
A agenda das minorias foi sendo assumida pela esquerda, embora historicamente não lhe fosse uma pauta própria. A questão indígena foi um exemplo dessa apropriação, tornando-se as tribos símbolos de resistência ao capitalismo, que teria destruído a sua situação originária, identificada a uma espécie de comunismo primitivo.
Os indígenas reais, com seus problemas urgentes de integração a uma sociedade não indígena, que os atrai e não os trata como iguais, foram sendo progressivamente abandonados. Em vez do equacionamento de uma questão social, com saúde, educação e moradias de qualidade, uma outra agenda entrou em pauta, a da luta contra o capitalismo, contra os produtores rurais, contra o agronegócio.
Acontece que a realidade não se deixa apreender desta maneira. Em artigo anterior, apresentei o caso de Barra Velha, no Sul da Bahia, posteriormente muito bem retratado no "Jornal Nacional", do dia 20 de setembro. Lá, o conflito opõe pequenos e médios agricultores e assentados da Reforma Agrária à Funai e ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
As oposições entre "ricos" e "pobres" desaparecem, com os assentados da reforma agrária, representados pela Fetraf (Federação dos Trabalhadores em Agricultura Familiar), ala rural da CUT, e pelo MST, aliados aos produtores rurais, opondo-se aos representantes dos indígenas. Um diretor da Fetraf, em termos muito incisivos, falou para o "Jornal Nacional". Um proprietário rural, por sua vez, chegou a exibir um título de propriedade anterior à promulgação de nossa Constituição.
Em outros lugares do país, a situação se repete. No norte do Rio Grande do Sul, nos municípios de Marau, Gentil, Mato Castelhano e Ciríaco, agricultores familiares e pequenos agricultores estão ameaçados por atos administrativos da Funai através da constituição de grupos temáticos e de identificação e demarcação. Em um primeiro momento, alguns representantes da Funai procuram tranquilizar esses produtores rurais e prefeitos, dizendo que os grupos são apenas temáticos e que os processos de identificação não foram concluídos. Pura enganação, pois uma vez a máquina posta em movimento o resultado é um só: a identificação e demarcação dessas terras. Os antropólogos a serviço dessa "causa ideológica" têm um só código de "ética", dar sempre razão às "minorias". A ciência foi abandonada.
Os rostos de agricultores familiares e pequenos agricultores expressam medo. A apreensão é total. Possuem títulos de propriedade em muito anteriores a 1988 e, no entanto, estão reféns da insegurança jurídica. Trabalhos de décadas estão em perigo. As famílias desconhecem o seu destino.
O Sul do Mato Grosso do Sul, em torno de 20% do estado, vive hoje a mais completa insegurança jurídica, com portarias da Funai que estabelecem estudos preparatórios de identificação e demarcação. Produtores rurais são vítimas de uma política que os tem como inimigos, como usurpadores, quando seus títulos são também em muito anteriores à Constituição de 1988. Lá, há também problemas graves de ampliação de terras indígenas. O conflito é generalizado.
Dentre as diretrizes estabelecidas pelo Supremo, quando do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, duas merecem ser destacadas, uma que estabelece o fato temporal indígena, a saber, a ocupação efetiva, presente, de territórios pelos indígenas, quando da promulgação da Constituição de 1988, e a proibição de ampliação de territórios indígenas já demarcados.
A primeira condição não acolhe a ideia de que um território indígena o é de fato por haver nele um cemitério ou traços de ocupação que remontam, por exemplo, há 100 ou 200 anos, se essa ocupação não se prolongou efetivamente no tempo. Laudos e relatórios antropológicos dessa maneira feitos não teriam validade.
A segunda condição veda novas identificações e demarcações a partir de um território já demarcado e homologado, na verdade uma ampliação, pois uma demarcação anterior apontou igualmente como terras não indígenas o seu entorno. Eventuais problemas de explosão demográfica devem ser objeto de um tratamento social, podendo, inclusive, se traduzir pela compra de terras, pelo valor de mercado, terra nua e benfeitorias, para equacionar um problema de ordem demográfica, social.
As duas diretrizes acima mencionadas estipuladas pelo STF incluem também como condição que os territórios em disputa, tanto no fato antropológico temporal, quanto na ampliação de territórios, não tenham sido objeto anterior de esbulho possessório, segundo o acórdão publicado a respeito. Eis um argumento que tem sido utilizado pela Funai e pelo MPF para restringir senão invalidar a decisão do Supremo. Na verdade, seria uma forma de seguir não seguindo o acórdão do STF. Há uma questão teórica importante aqui envolvida. A condicionante de uma regra não pode ser interpretada de tal modo que invalide a própria regra da qual ela é uma condição. Isto seria equivalente a anular a própria decisão do Supremo.
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