O GLOBO - 17/08/11
Na mesma tarde, um estudante me perguntou, num debate, o que eu achava da faxina da corrupção iniciada pela presidente Dilma, e um motorista de táxi quis saber a que instituição deveria recorrer para iniciar um movimento contra o roubo do dinheiro público. É o assunto do momento.
É totalmente torta a ideia de que o combate à corrupção nos levará de volta à ditadura.
Disse ao estudante que se a presidente conseguir que o País pare de piorar já terá dado um grande passo. Avisei ao motorista que a indignação dele já era um bom começo. É urgente estabelecer parâmetros que impeçam a leniência com o desvio do dinheiro do contribuinte.
Nos últimos dias, o debate político trouxe à tona várias lendas em torno do assunto. A pior delas é o argumento usado pelo senador José Pimentel, do PT, de que o movimento de combate à corrupção fará o País repetir os fatos que, nos anos 60, fizeram a defesa da ética ser usada como pretexto para o golpe militar.
Se Jânio Quadros renunciou, aumentando a instabilidade política, a culpa não é do eleitor que viu sua vassourinha como promessa de limpeza. A culpa é dele mesmo. Se o discurso udenista foi usado pelos militares, a culpa não é da ideia da ética, mas dos golpistas que propuseram o golpe de Estado. Os militares e seus aliados estavam decididos a depor o governo civil. Tudo o que disseram na ocasião - da suposta república sindicalista de Jango à corrupção de alguns políticos - foi pretexto para ação deliberada de golpear as instituições democráticas.
Esta intenção não está presente hoje nas Forças Armadas, então que fique tranquilo o senador José Pimentel. Não há "anos de chumbo" sendo contratados pelos que querem que o Brasil tenha parâmetros civilizados de administração pública, transparência e controle no uso do dinheiro dos contribuintes. Não há nada por trás do desejo legítimo do eleitor de que haja novos hábitos políticos no Brasil. Não há conspirações nos quartéis. Não há interesses ocultos. O que o país quer é simples.
A verdadeira ameaça é deixar tudo como está. A leniência com a corrupção mina a democracia. Dará ao eleitor a sensação de que o roubo é da natureza do regime democrático e, assim, preparará o País para o aparecimento de algum salvador da pátria.
A presidente não será a salvadora da pátria; nem ela se apresenta assim. Dilma apenas tem tomado decisões sensatas diante de indícios fortes, gravações inequívocas e flagrantes. Analisa os fatos e afasta autoridades dos seus postos. O princípio de que todos são inocentes até prova em contrário não pode ser usado contra a sociedade. Outra lenda urbana é que os partidos que compõem a base vão abandonar o governo caso a presidente vá em frente no esforço de construir novos parâmetros para a administração pública. É da natureza desses partidos viver em torno dos governos. Alguns nem sabem ser oposição.
Podem fazer um ou outro evento de rebelião, como efeito de demonstração, mas a presidente não deve se deixar chantagear: nem com a ameaça de dissolução de sua base parlamentar, nem com as vozes que tocam nas feridas recentes e ameaçam com novos "anos de chumbo".
Nada tem a presidente a perder. Uma atuação firme do governo vai inibir a sem cerimônia com que os corruptos têm usado o poder, os órgãos públicos e o dinheiro coletivo nos últimos anos. O fim da sensação de impunidade já será o dique que impedirá que o País piore.
E a piora é inconcebível. É preciso começar a instalação de novos parâmetros, a correção de desvios, o desenvolvimento de ferramentas de controle, o aumento da transparência, a punição dos desvios. Como todo processo, será lento, mas não é impossível sonhar com instituições mais decentes no Brasil.
O fato de o Brasil ser administrado por uma coalizão torna natural que haja divisão de poder dentro da estrutura de governo, o que normalmente se faz com a distribuição de cargos. Isso não quer dizer em absoluto que o partido, ao ocupar algum posto, possa usá-lo como sua donataria.
A divisão de poder que ocorre em qualquer coalizão tem sido entendida como a repartição do governo em capitanias. Governar em coalizão não está errado; inúmeros países passam por situações assim quando formam maiorias em regimes parlamentares e até presidencialistas. O errado é instalar nos postos alguém que vai desviar dinheiro público para o seu partido, para ele próprio, para o líder que o indicou.
Todo órgão público negocia contratos de prestação de bens e serviços para o governo. Nesses contratos, como se sabe, é que mora o perigo. A fiscalização do governo tem de ser mais ativa. Não pode apenas agir após a denúncia feita por algum órgão de imprensa.
A faxina é saudável, tinha de ser iniciada. Não é o renascimento do golpismo de 64, não vai resolver todos os problemas da noite para o dia. Ela é necessária porque aperfeiçoa a democracia e fortalece os laços dos eleitores com seus representantes. Que nenhum fantasma do passado, ou do presente, paralise o processo de saneamento. (Com Álvaro Gribel)