sábado, agosto 27, 2011

Distorções MERVAL PEREIRA


O GLOBO - 27/08/11

Antes mesmo de se discutir uma reforma que dê mais sentido ao nosso sistema político, é preciso considerar que, no presidencialismo, o presidente é o chefe do Executivo, e a "direção" do país é indicada pelo Congresso. É possível dizer que o presidencialismo é o "inventor", ou o melhor tradutor, do princípio da independência entre os Poderes, base do sistema de pesos e contrapesos da democracia.

A Constituição não prescreve o emprego de membros do Legislativo como auxiliares do Executivo; essa prática exacerbada em nosso "presidencialismo de coalizão" é um desvio de finalidade, e os efeitos estão à vista de todos.

Está faltando a nossos políticos a noção de que o Executivo presidencialista ter de nomear deputados e senadores como seus ministros é, como diz um amigo meu, uma "novidade tropical", e como tal só pode redundar em distorções da função pública, tornada o mais das vezes em função que atende a interesses privados.

A briga no Congresso por vagas no Ministério, da maneira como se dá, é uma deturpação dos valores do presidencialismo, sintoma de tendência ao patrimonialismo e ao fisiologismo.

Um parlamentar que vai para o Ministério abre mão de exercer seu mandato como membro de um dos Poderes da República para aceitar papel secundário em outro poder, a maioria das vezes com interesses subalternos, como está se revelando rotineiramente nesses primeiros meses de governo Dilma.

Não é que não houvesse essa deturpação em governos anteriores, mas desestruturação cada vez maior dos partidos políticos, e a sempre ampliada base governista, formam um agrupamento que não faz liga programática e levam a que a composição ministerial obedeça cada vez mais a interesses esparsos e pessoais - e os políticos se tornem posseiros de "feudos" onde reinam, soberanos, não para implementar projetos, mas para se beneficiar, e aos seus apaniguados.

O próprio aumento do número de ministérios colaborou para a redução da importância deles, que se transformaram em grande parte em fontes de negociatas.

Como não estamos no parlamentarismo, onde os programas de governo são defendidos pelos partidos que ganharam a eleição, a maneira como os partidos aqui negociam seus pedaços de poder os transforma em atores que não desejam opinar nas diretrizes que vierem a ser adotadas pelo governo a que aderiram por mero desfrute.

Todos os políticos que se digladiam por uma vaga na Esplanada dos Ministérios deveriam, em teoria, renunciar aos mandatos, não podem servir ao Poder Executivo no exercício do cargo para o qual foram eleitos.

Mas apenas se licenciam, e têm a prerrogativa de retornar ao Congresso quando deixam o Ministério, além de continuar a receber o salário de parlamentar, maior que o de ministros, como aconteceu recentemente com o senador Alfredo Nascimento, saído dos Transportes e devolvido sem honra ao plenário do Senado.

O sistema presidencialista oferece ao chefe do Poder Executivo muitas alternativas legais para contornar o Legislativo, e os presidentes têm mais flexibilidade para montar seus ministérios.

Enquanto no parlamentarismo os governos são organizados essencialmente pelos componentes dos partidos que formam sua base parlamentar, no presidencialismo é possível escolher ministros de acordo com critérios próprios, e até mesmo levando em conta apenas as relações pessoais.

Na teoria, uma das virtudes que devem ser evitadas ao se montar uma boa equipe de governo é, paradoxalmente, a lealdade do escolhido, o que leva inevitavelmente a que pessoas não qualificadas, mas leais ao presidente da República, assumam postos importantes nos governo com o único compromisso de que não se voltarão contra quem os escolheu.

Há quem defina o hiperpresidencialismo como uma ditadura disfarçada, cuja fronteira para a ditadura de fato é a liberdade de imprensa, que geralmente não existe em países que já adotam esse sistema de governo, como a Venezuela e a Rússia.

A partir do caso da Rússia, os estudiosos dos sistemas de governo dizem que a fragmentação partidária pode levar a que o Executivo estimule uma maioria circunstancial que favoreça a aprovação de sistemas autoritários.

Seria o mesmo fenômeno que acontece na América Latina, com governos se utilizando dos mecanismos democráticos para aprovar leis que lhes conferem superpoderes, colocando o Executivo acima dos outros Poderes, fazendo com que o sistema democrático perca sua característica de contrapesos.

Nós ainda estamos em um estágio anterior, em que essa desagregação dos partidos facilita apenas o predomínio do Executivo sobre o Legislativo às custas de vantagens fisiológicas que estão sendo reveladas quase que cotidianamente.

É o que chamo de uma "maioria defensiva", que só serve mesmo para evitar a convocação de ministros, a realização de CPIs e, no limite, processos de impeachment.

E, mesmo quando o Legislativo decide "mostrar a sua força", o faz quase sempre na base da chantagem política, e não na defesa de uma posição ideológica ou programática.

No presidencialismo, deputados e senadores eleitos governam o país no Parlamento, no Congresso, como parte principal de um dos Poderes da República.

Abrindo mão do mandato, passam a exercer papel secundário do Poder Executivo, mais secundário ainda quanto mais forte for o presidente da República.

Mas raros são os que têm essa percepção ou essa visão da política para rejeitar essa submissão. A maioria, infelizmente, quer usufruir as vantagens que a "lealdade" ao poder central lhe garante.