quarta-feira, julho 20, 2011

Roberto DaMatta. Pescadores

Somos todos pescadores e, mais do que isso, pescadores à deriva.
Perdidos e crentes naquilo que temos: água, luz, calor, motor, comida
e aqueles abrigos dos quais os mais importantes dizem respeito ao
pertencer a alguém ou a algum grupo, etnia, classe, país e sociedade
do que a ser ou ter alguma coisa. É impressionante observar como nos
sentimos seguros e salvos com tão pouco: uma reza, uma canção, um
amor, um elogio, um ódio, um livro ou um copo d"água. Não existimos se
não atuamos em algum teatro que nos informe sobre como ser e nos
apresente um conjunto complicado e contraditório de papéis sociais -
do nome de família e do clube de futebol - a coisas ainda mais
abstratas, senão impossíveis, como ser completamente bom, honesto,
forte, sensível, honrado e, para culminar uma enorme lista, viver
tranquilo e feliz!

Como ser tudo isso e mais alguma coisa quando o tapete sobre o qual
atuamos, nos é subtraído? E o drama se transforma porque somos
obrigados a desempenhar papéis não planejados, esperados e desejados.
Como diz o axioma de Shakespeare, o mundo é um palco e todos somos
atores nesse drama para o qual não fomos convidados e no qual temos um
momento de entrada e outro de saída que, para nossa angústia (e
felicidade), não sabemos quando vai ocorrer.

Se soubéssemos, a vida social seria impossível por uma ausência de
valores. As juras, as vocações, a dedicação, os gozos, as promessas,
as vinganças, os grandes ressentimentos - tudo o que, no fundo,
depende de decisão e escolha - desapareciam. Bem como a conversão, o
arrependimento e a crise de consciência. O imponente "agora ou nunca"
perderia o sentido. As lágrimas sem testemunho são o produto dessa
finitude precipitada pelas situações-limite cujo desenlace não
sabemos, embora possamos imaginá-lo. E aí está, conforme contam meus
amigos mais queridos nos livros que ontem e hoje escreveram, a razão
da música, da poesia, do teatro, da dança, do cinema e, acima de tudo,
da literatura - dessas "artes" cujo alvo é a transformação da vida
(insondável nas suas origens e fim, bem como na sua trajetória) em
algo com significado. Com um início, um meio e um fim. Pois nesses
casos, a verdade irrecorrível da finitude (e da morte, que é comum a
todas as sociedades humanas, apesar de suas enormes - e aparentes -
diferenças) transforma-se em algo prosaico, já que a experiência da
morte nas artes permite viver esteticamente o fim, realizando - quando
tudo vai bem - o casamento da Verdade (todos morrem) com a Beleza
(nada mais formoso do que uma vida honrada).

* * *
Escrevo nesse tom porque esses dias têm marcado minha vida por
passagens especiais. Da morte de um ex-presidente que honrou o
liberalismo; dos desastres que deixam ver a mão sombria e cega do
acaso. Tudo culminando, porém, com o resgate milagroso e, por isso,
belo e redentor do humano dos seis pescadores capixabas que, depois de
21 dias à deriva e a 500 quilômetros de distância do seu ponto de
partida, chegaram - notem - à "terra firme" para gozarem do reencontro
com suas famílias.

Quem já viveu as duas situações, sabe bem o que é experimentar o
sólido (da tal "terra firme") afundar na liquidez da morte súbita e da
doença incurável. Melhor dizendo, das incertezas do viscoso - situado
entre o sólido e o líquido -, que é uma figura mais adequada para as
fantasias terríveis guardadas pelo não saber o que aconteceu com o
filho, a esposa, o irmão ou o amigo - engolfados pelo mar imenso, pelo
breu da noite e pelo frio da tempestade. Não morreram, Deus é grande!
- diz um lado nosso. Estão mortos, não há esperança! - diz um outro.
Quando não nos é dado saber se o lado que guarda a esperança é maior
ou menor do que o desesperançado, chegamos aos limites do texto
frequentemente simplório (e como poderia ser de outro modo?) que a
família, a escola e o sistema nos infunde. Olha, guri, você cresce,
fica forte, educa-se, casa-se, torna-se adulto, tem filhos, e um dia -
depois de ter sido "feliz para sempre" - você (tranquilamente)
morre...

Quando a dúvida do será que morreu ou sobreviveu bate na porta; quando
somos assolados pela doença incurável que canibaliza o ser, sabemos
que chegou a nossa hora. Momento de desesperar e tudo renegar? Momento
de entrar em depressão e desistir de viver? Momento de se sentir
traído pelos deuses e pelo tal de destino que só nos visita quando não
é esperado?

Cada qual responde como pode. Uns agarram-se no outro mundo. Outros
descobrem que a "nossa hora" é um áspero chamado para um renascimento.
Para uma outra vida, com aqueles entes queridos dentro de nós. De
agora em diante, temos que viver o mundo com um pedaço de nossas
biografias cortadas, feridas, mas paradoxalmente ampliadas. Com esses
entes queridos dentro de nós, temos a obrigação de honrar suas
memórias e de, eis o mais difícil, fazê-las viver através de nossas
vidas, toda essa felicidade que, apesar de tudo, ainda pode ser
encontrada.

Pois só os perdidos podem ser achados.

E se tudo correr bem, caros leitores, volto em agosto renovado por
outras dúvidas e questões.