O Estado de S.Paulo - 02/07/11
Em maio de 2004 realizou-se seminário sobre drogas com mestres e doutores pela Faculdade de Direito da USP, cujo resultado foi a coletânea Drogas - Aspectos Penais e Criminológicos (Forense, 2005). Vários trabalhos mencionam ter a guerra para erradicar o mal das drogas, mormente pela intimidação do usuário, se iniciado nos Estados Unidos em 1914 com o Harrison Narcotics Act, seguido do Marihuana Tax Act, de 1937. A guerra foi amplamente declarada por Nixon em 1973, reiterada por Reagan em 1982 e, depois, ampliada por Bush pai. As drogas foram consideradas o inimigo público número um, devendo-se guerrear contra traficantes e usuários.
As Nações Unidas promoveram convenções no mesmo sentido, por influência dos Estados Unidos: Convenção Única sobre Estupefacientes, de 1961; Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971; e Convenção de Viena, de 1988, na qual se consagrou a War on Drugs, com exigência de punições mais graves contra os usuários, visando à dissuasão e intimidação da coletividade para a extirpação das drogas.
Imaginava-se a definitiva erradicação do cultivo de ópio em 15 anos e a da maconha e da cocaína, em 20 anos, ou seja, em 2008. Assim, o Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas, formulado dez anos depois, em 1998, intitulava-se 1998-2008, um Mundo sem Drogas: Podemos Conseguir.
No entanto, como alertaram no seminário os palestrantes (Renato Silveira, Janaína Paschoal, Helena Lobo da Costa, Pierpaolo Bottini, Leonardo Sica, Antônio Sérgio Pitombo, Alberto Toron e Cristiano Maronna, entre outros), a War on Drugs era uma causa perdida, pois jamais haveria um mundo sem drogas, apesar das declarações oficiais de crença na vitória nessa guerra, cujas principais vítimas foram os jovens usuários jogados nas prisões.
Mariângela Magalhães Gomes lembrou o resultado da guerra nos anos 90: na Holanda, onde havia tolerância ao uso e ao pequeno comércio de maconha, a média de pessoas que experimentou a droga foi da ordem de 4,5% da população, enquanto nos Estados Unidos alcançou os 8,5%.
Em dissertação de mestrado (Drogas: falência do proibicionismo e alternativas de política criminal), Rogério Taffarello mostra como na Europa, já a partir de meados dos anos 90, se começou a modificar a linha adotada em Viena. Na Alemanha, promoveu-se desde 1994 a substituição da pena por tratamento, se pequena a quantia da droga. Em 2003 adotou-se plano de redução das consequências negativas do uso de drogas, com usuários e familiares. Na Espanha, desde 1992 e depois, com o Código Penal de 1995, passou a ser proibido apenas o uso de drogas em local público. Na Itália, a posse e a compra de droga para uso próprio são ilícitos administrativos, cujas sanções podem ir desde audiência com o chefe de polícia até medidas de tratamento, a depender da natureza da substância e de ser ou não o usuário reincidente. Em Portugal, a partir da Lei n.º 30 de 2000, a posse e o consumo de drogas passaram a ser apenas ilícitos administrativos, devendo o usuário ser encaminhado à Comissão Multidisciplinar de Dissuasão da Toxicodependência, que pode recomendar medida terapêutica.
Quando tramitava no Senado o Projeto de Lei n.º 105, da Câmara dos Deputados, em 1999, fui indicado pelo então secretário nacional Antidrogas, Wálter Maierovitch, a presidir comissão visando à formulação de projeto substitutivo ao então em apreciação. Essa comissão era composta por membros do Ministério Público Federal e Estadual, da Polícia Federal e estadual, por médicos, psicólogos, juízes, advogados e assistentes sociais. Em abril de 1999, findou-se o projeto, pelo qual se, de uma parte, descriminalizava o porte de droga para uso próprio, por outra, punia o tráfico com gradação diversa conforme o modo da conduta. Enviado o projeto à liderança do PSDB, esta, no entanto, não o apresentou ao Senado.
Assim, se o usuário fosse apanhado portando entorpecente, caberia registrar termo na polícia a ser enviado ao Juizado Especial Criminal para se imporem, em face dessa mera infração administrativa, medidas educativas: encaminhamento aos pais ou responsável; comparecimento pelo prazo máximo de um ano a programa de reeducação, curso ou atendimento psicológico; orientação e apoio temporário por assistente social; participação em programas comunitários; prestação pecuniária.
Caso o reeducando deixasse de cumprir as medidas educativas poder-se-ia aplicar multa, prestação de serviços à comunidade ou suspensão do direito de conduzir automóvel.
No projeto, autorizavam-se os Estados a programar medidas de redução de danos, como troca de seringas, com o fito de impedir, por exemplo, a disseminação da aids.
Propunha-se, então, a total descriminalização do porte de drogas para uso próprio e da cessão para uso comum. O projeto não se limitava, como sucede com a atual Lei n.º 11.343, de 2006, a proibir a aplicação de pena privativa de liberdade, pois efetivamente deixava o usuário de cometer delito, sujeito apenas a medidas socioeducativas.
Considero, todavia, um equívoco do projeto o envio do termo registrado na polícia ao Juizado Especial Criminal, quando deveria sê-lo ao Juizado Cível, para evitar qualquer estigmatização do usuário.
Com o impacto positivo trazido pelo filme Quebrando o Tabu, em que o repórter especial Fernando Henrique Cardoso traz dados relevantes para mudança da visão repressiva, com depoimentos de líderes políticos, intelectuais e médicos, é o momento de propor a descriminalização do porte de entorpecente, para privilegiar medidas de prevenção elucidativas, não alarmistas, esclarecendo o jovem sobre o tentador paraíso efêmero das drogas e instruindo pais e mestres a discutirem o problema sem preconceitos, visando à proteção do livre desenvolvimento da personalidade do adolescente.