O Globo
A lenda de que o PT escolhe seus candidatos "ouvindo as bases" não passa disso, uma lenda, que tem origem em um tempo em que chegar ao poder, qualquer tipo de poder, ainda era um sonho, e era possível imaginar-se um partido em que o comando não seria imposto, mas acatado pelo consenso partidário.
A cada movimento que aproximou o partido do poder, inicialmente em alguns municípios, depois em capitais, mais adiante em estados, mais e mais a corrente majoritária tratava de montar suas estratégias para controlar as decisões finais do partido, o que incluiu, quando necessário, a intervenção direta nas direções regionais.
Com exceção de um pequeno período em que Lula e José Dirceu se separaram numa briga interna, o poder nunca lhes fugiu.
Reconciliados, aprenderam que juntos poderiam controlar indefinidamente o PT, e por isso, embora existam ainda no estatuto do partido, as prévias foram se tornando cada vez mais um hábito arcaico, que não reflete o estágio de poder a que o partido chegou a nível nacional.
Por acreditarem nas prévias como instrumento de democratização das decisões, os senadores Cristovam Buarque e Eduardo Suplicy caíram em desgraça; o primeiro acabou saindo do partido, o outro permanece lá, azucrinando as lideranças com sua falsa ingenuidade, mas não tem a menor importância dentro da legenda e dificilmente conseguirá apoio para se candidatar de novo ao Senado ao fim de seu mandato, quanto mais a prefeito, como está pretendendo.
A rebelião dos dois senadores deu-se na escolha do candidato do partido à Presidência da República em 2002, depois de Lula ter sido derrotado quatro vezes anteriormente, duas para Collor, no primeiro e segundo turnos de 1989, e duas no primeiro turno para Fernando Henrique.
Os dois lançaram dentro do partido a ideia de que Lula deveria dar lugar a uma candidatura nova e se dispuseram a ser esse candidato. Cristovam acabou desistindo da empreitada, diante da insistência de Lula, mas mesmo assim não foi perdoado.
Convidado para ser ministro da Educação do primeiro governo Lula, acabou sendo demitido por telefone e teve de sair do PT, indo para o PDT, onde foi candidato a presidente contra Lula em 2006.
Mas Suplicy levou adiante seu anseio e foi massacrado. Perdeu por 84,4% a 15,6%. Agora, para irritação do ex-presidente Lula, ele decidiu pedir a realização de prévias no PT para a escolha do candidato à disputa pela Prefeitura de São Paulo em 2012.
Naquele seu jeito sonso de fazer política, Suplicy declarou-se com vontade de "trocar ideias sobre a importância de realizar prévias" com a direção do PT e anunciou que gostaria que seu nome fosse levado em consideração.
Acontece que Lula tem outros planos para o PT paulista, e também a ex-mulher de Suplicy, a senadora Marta Suplicy. Lula quer que o ministro da Educação, Fernando Haddad, seja o candidato do consenso, enquanto Marta insinua que se colocará como candidata se Haddad for realmente lançado.
Agora são dois Suplicys no caminho de Lula, embora por razões distintas. E poderíamos ver a situação insólita de o ex-casal se digladiando por votos numa prévia partidária, sem que Lula apoiasse nenhum dos dois.
Mas dificilmente isso acontecerá, pois Lula, nos bastidores, já trabalha para inviabilizar as prévias. O 4º Congresso do PT tem como um dos objetivos alterar o estatuto para modernizar a ideia de prévias, que provavelmente continuará lá, pois simboliza as origens do PT que se perderam na poeira da História, mas precisam ser mantidas justamente como símbolos.
Assim como a busca do socialismo, que continua como objetivo político do PT, mas não passa de letra morta.
O ministro Gilberto Carvalho, o mais evidente elo entre Lula e a nova gestão petista comandada pela presidente Dilma, já vocalizou o que Lula pensa: "Seria um desastre ter prévia no PT em São Paulo", disse em entrevista recente, lembrando que o sistema acabou se transformando em trauma para o partido, pois, toda vez em que as prévias foram realizadas, houve enorme dificuldade para juntar o partido e reunificar a base.
"Com a disputa no nosso campo, as prévias oferecem munição para o adversário", é o diagnóstico que predomina na corrente majoritária, que joga uma cartada decisiva nas próximas eleições municipais para tentar tirar do PSDB o domínio da prefeitura paulistana, o que abriria caminho para um projeto mais ambicioso: derrotar os tucanos no governo de São Paulo.
Lula tomou a si a tarefa de dar esse salto qualitativo no poder petista e está negociando em diversos setores para montar uma aliança política forte para Haddad.
Um dado fundamental nesse jogo de xadrez paulista é o PMDB do vice Michel Temer, que surge como provável sucessor de Orestes Quércia no controle regional do partido.
Lula está empenhado em fazer um acordo com ele, mas esbarra na estratégia do PMDB de ter candidato próprio à prefeitura.
Com a ida do deputado federal Gabriel Chalita para o seu partido, Temer ficou com um trunfo político importante e já provoca a ambição do governador Geraldo Alckmin, que se aproximou dele homenageando Quércia com o nome de uma ponte.
Se depender de Alckmin, uma aliança com o PMDB para apoiar Chalita não seria má opção, muito ao contrário. Chalita foi seu secretário e saiu do PSDB, primeiro para o PSB e depois para o PMDB.
No PSB, o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, patrocina acordos com o PT de Lula. No PSDB, o ex-governador José Serra não tem Chalita como um dos seus.
Mas, se Serra não aceitar mesmo concorrer à prefeitura, perderá muito das condições políticas para impor um candidato seu, como parece ser o caso do ex-secretário Andrea Matarazzo.
Os pré-candidatos do PSDB estão namorando as prévias, mas a atuação de Alckmin será fundamental para uma decisão consensual que pode levar ao apoio de candidato de outra legenda, como Chalita.
Da mesma maneira que Gilberto Kassab, então no DEM, acabou sendo apoiado pelo então governador José Serra, para derrotar Alckmin.
Sinal de crise que não se acaba.