- 01/07/11
Desprezando o bom senso e todos os sinais de alerta, o governo decidiu investir sua reputação - e não só dinheiro público - na fusão dos Grupos Pão de Açúcar e Carrefour, um negócio polêmico, legalmente arriscado, potencialmente nocivo a consumidores e fornecedores e inteiramente estranho à missão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Apesar de seu empenho, nenhuma autoridade conseguiu justificar a participação do Executivo nessa aventura nem dissipar os temores diante da ameaça de maior concentração de poder no mercado de alimentos e de outros bens essenciais. Ao contrário: ao tentar defender o indefensável, as autoridades se arriscam cada vez mais num terreno política e moralmente pantanoso.
Não se usará recurso público nessa operação, disse a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. Segundo ela, o dinheiro será investido pelo BNDESPar, numa transação de mercado. Mas todo o recurso usado pelo sistema BNDES - para empréstimo ou para investimento - é público, venha do Tesouro, do Fundo de Amparo ao Trabalhador, de fontes internacionais ou do lucro de suas operações. O BNDES é um banco público, sem acionistas privados, e esse é o status também do BNDESPar. A advogada Gleisi Hoffmann, ex-diretora financeira de Itaipu e especialista em gestão pública, certamente conhece esses dados, mas parece havê-los esquecido.
O ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, presidente do Conselho de Administração do BNDES, foi igualmente infeliz ao defender a fusão e a possível participação do banco. A associação entre o Pão de Açúcar e o Carrefour "abrirá uma porta importantíssima para a colocação de produtos brasileiros industrializados no mundo inteiro", afirmou. Segundo ele, seria esse o grande interesse estratégico da operação. A alegação é constrangedoramente ridícula.
O Pão de Açúcar já é associado a um grupo francês, o Casino. Produtos com a marca desse grupo são vendidos na rede brasileira. O comércio tem funcionado na mão inversa? O Carrefour poderá oferecer melhores perspectivas para esse intercâmbio? O ministro passou longe desses detalhes, e isso é compreensível, porque o comércio do Brasil com a França e com outros países da União Europeia envolve questões muito mais complexas. Não é esse o ponto.
O ministro escorregou, também, ao criticar os bancos privados por deixarem de ajudar a fusão. Segundo seu raciocínio, o BNDES apenas cumprirá, como sócio do empreendimento, um papel negligenciado pelas instituições privadas. Esse argumento pode valer para os financiamentos de longo prazo destinados a programas de investimento e até, em casos muito limitados, para aplicações de risco. Não serve, porém, para certas operações desenvolvidas pelo BNDES nos últimos anos. Essas operações incluem a ajuda a grandes empresas capazes de levantar dinheiro no mercado interno e externo, o apoio a grupos selecionados para papéis "estratégicos" (mas não estratégicos de fato) e o socorro generoso a grandes empresários em apuros.
Para completar, um lembrete inevitável: não é função do governo - e isto inclui o BNDES - cuidar dos interesses do empresário Abílio Diniz em suas disputas com os dirigentes do Grupo Casino. Esse é um assunto estritamente privado e é um abuso tentar travesti-lo como questão de interesse nacional. O interesse nacional está relacionado a outro ponto - a preservação de condições sadias de concorrência num segmento de grande relevância para o bem-estar da maior parte da população. Será preciso pensar especialmente naquelas áreas onde Pão de Açúcar e Carrefour já têm uma grande participação no varejo.
Toda ação do governo em relação a esse caso - por meio do BNDES, do sistema de defesa da concorrência e de outras instituições, como a Comissão de Valores Mobiliários - será acompanhada com muito interesse dentro e fora do País. O governo estará numa vitrine, até por causa da presença do empresário Abílio Diniz num órgão ligado à Presidência, a Câmara de Políticas de Gestão, Desempenho e Competitividade, e de seus vínculos com a presidente Dilma Rousseff e seu antecessor.